domingo, maio 25

A propósito da história da infâmia: o meu amigo João mais que Tudo, mas que podia ser outro qualquer (I)

Hoje almocei com um suposto amigo meu, cujo nome, aqui apenas designado por João, não é tido nem achado neste lugar.

Rapaz garboso, menino grande, esperto e composto, talvez um pouco vaidoso, pelas qualidades que enunciei, que por generoso se faz passar - porque com isso talvez nos pense cativar, tudo, aparentemente, dando, sem nada cobrar - e a quem eu tenho (tinha, ou julgava ter) uma certa afeição.

Divertia-me com as suas histórias, singelas, num primeiro olhar, histórias de cafés, de copos e bares e, subliminarmente, mulheres ... é um facto, pensava eu, que ele me conseguia entreter, despreocupando-me com as suas "travessuras" banais!

Casado, cedo abraçado a uma mulher, igualmente se tornou no divertimento de outras fêmeas que, aproveitando o escasso tempo livre da esposa mãe, por ele de amores se foram caindo e perdendo.

E assim o tempo foi passando: entre mãe e filhos e outros encantos mais, ele foi continuando a ser o passatempo de amigas e amigos com as suas histórias de ocasião.

Há uns tempos atrás (anos passaram, não saberei dizer quantos foram, afinal, mas já ultrapassaram os dedos de uma mão), pediu-me uma "entrevista" especial, urgente, carente; precisava de me falar!

Desta vez era uma história especial, com a qual quase não sabia conviver.
Circunspecto, em vez do seu ar normalmente jovial, disse-me: desta vez nem me vais acreditar, nem mesmo eu te sei como te contar: apaixonei-me verdadeiramente, consegui aprender o que queria dizer amar!

Talvez lhe devesse ter respondido qualquer coisa banal, como por exemplo "acontece aos melhores"..., acostumada que já devia estar aos seus episódios.
Mas satisfeita de o ter visto em tal momento de confissão, em tal propósito de amar, em vez de o demover, tal velha amiga ciumenta com receio de perder as horas de descomprometida companhia, soube, contudo, dizer: "Que bom, finalmente vais crescer! Estás bem certo do que estás a dizer?".

Reafirmou-me a sua convicção durante bastante tempo mais. Anos mesmo mais.
Ia eu, de vez enquando, perguntando, com um ar superficial, mas afinal em que ficas se nenhum gesto conseguiste fazer que altere a tua situação?

Desculpas muitas, coisas para resolver e coisas para tratar ... e eu pensando ... bom ... a vida tem os seus tempos, quem sou eu para lhe ditar os meus?

Finalmente, um dia, voltou a anunciar: desta vez é que é. Vou ter que mudar! A minha vida vou transformar. Estou disposto a não ser mais e apenas uma espécie de bobo da corte, a que todos se habituaram a ver em mim. Estou cansado desse lugar ocupar.

Não sei se verdadeiramente acreditei (penso mesmo que não, tanto me habituara aos desfechos das suas histórias banais), mas, mesmo assim, tão crédulo estava, que lhe resolvi dizer:
"Vai força, certamente que a vida vais, de novo, conhecer!
Estás a precisar de contigo próprio romper, estás a precisar de mudar e de crescer".

Soube por conhecidos e amigos meus que um salto ele quis dar, foi estudar, foi conhecer outros lugares para trabalhar.

Mas, entretanto, já a sua suposta grande paixão vinte mil léguas tinha conseguido palmilhar: mudar de casa, trocando de lugar e local de trabalho, tentando não encarar o ofício como a sua único e grande amor, convicta no ele lhe dizia e para ver se o seu bem amado nela conseguia finalmente confiar (pois ele com muitos ciúmes e desconfianças múltiplas a seu respeito ia escondendo as que o corroiam a si próprio)!

Aparentemente, julgava eu e outros tantos mais, lá se tinha decidido ele, finalmente, tentar arriscar e tentar mudar, não sei se por convicção, mas porque, à força de ver decidir, e de tanto ter anunciado, se envergonhou de nada fazer!

Hoje telefonou-me, de novo, urgente, carente, quase não o reconheci, voz dormente, "contigo amiga preciso de falar".

Julgo que já teria bebido demais, não sei, só sei que o ouvi sussurrar: afinal não consegui, não consigo mudar! Ela tudo mudou, tudo fez para caminhar, mas eu ... o meu lar, os meus filhos (tão recorrente e melodramática se tinha tornado esta frase nele ...), esses não posso não posso deixar! Eles não me iriam aceitar.

Quase tive vontade de rir (talvez chorar?) daquele desabafo, caricato, ao olhar menos torelante que hoje tinha e, quem sabe, fruto do cinza que na tarde se espraiara.

E ele continuando a beber...

Só fui capaz de perguntar: "o que te faz sempre fugir? O que te faz continuamente a ti próprio enganar? O que te faz mentir? O que te faz envolver os outros no que não és capaz de ser e agir?

Recordei com desiteresse as mil histórias que nos tinha contado, ou de que tinha amigos ouvido falar, de fugas, de mentiras, vexames, alguns dos quais envolvendo filhos e mulher.

Histórias de que, por momentos, me tinha conseguido rir e que me tinham feito descontrair.
(Afinal quem não precisa de ouvir algumas histórias contadas com humor?)

Mas desta vez não, não consegui rir.

Resolvi ao trabalho regressar, se bem que, no caminho, me tenha posto a pensar:

- Como me posso eu divertir com amigos assim, se afinal de nada mais sirvo do que uma almofada para ele se continuar a escutar e apenas a si próprio?
- De que me servem histórias destas se, no fundo, pouco consegui dizer ou aprender?
- Para que servem amigos desta feição que nem o outro lado do espelho conseguem ver, nem tão pouco o eco ouvir?
- Para que sirvo eu também se nada lhe consegui transmitir?.

Tentei escrever, trabalhar, mas o João mais que Tudo e as suas histórias banais não me saíam da cabeça, tão enfastida me tinha conseguido deixar, até que a mim própria declarei: amigos destes não quero mais!

Podem servir para me fazer rir em momentos de solidão, podem ser um espécie de lastro a que me vou agarrando ... porque acompanham bem um vinho de momento e de sabor, mas quem sou eu, então, para que tais histórias me continuem a fazer divertir?

Histórias iguais ... sempre iguais, de desculpas muitas, e de servidões!
Já basta o tenho para viver, o que tenho que fazer!
Histórias destas acabam por tédio criar.

Amanhã telefonarei ao João e vou-lhe, garantidamente, dizer:

Até quando nos queres divertir se, do outro lado, há choros a ranger e a tanger, decisões a tomar, coisas por fazer?
Egoísta amiga fui eu também que nunca tinha conseguido espreitar o outro lado do espelho que era também o teu! Isso também lho saberei dizer.

Se ao teu lado há a esposa a esperar e, por outro, pessoas que em ti ainda quiseram acreditar?

Não amigo João, com sorte ainda irás fazer parte da História Universal da Infâmia e eu não estou aqui para te aturar nem para as contar!
Porque as tuas ingénuas estórias fazem parte de qualquer História a que não posso pertencer, que já nem me conseguem divertir.

Bebe, bebe, vai dormir ... talvez um bom pesadelo, um dia, te faça acordar.
Ou, quem sabe, uma qualquer Salomé a tua cabeça vá pedir em bandeja de prata.

Amigos assim já não me sabem fazer rir!
Não que seja moralista, mas a mentira, como atitude constante, recorrente, cada vez mais náuseas, mais urticária, me conseguem causar.

Pena? Não sei, apenas deixarei de ter companhia para esses momentos de álcool, de humor ou de desolação.

Quem sabe se, sem audiência, sem nos divertir, um dia te consigas, de facto, escutar.

Senão talvez seja melhor emigrar ... correr o mundo, retirar para pensar, não sei, talvez te venham buscar, apanhando os estilhaços teus, mas histórias como essas eu não quero mais ouvir.
Apenas porque são e serão sempre iguais!

E continuando eu pelo caminho que tenho levado, tu, uma vez mais, nos contarás histórias banais, como se para além de ti nada mais existisse do que um trago de vinho e de bom humor.

É que desta vez quem sofreu na pele as tuas "suaves" infâmias também amiga minha é. Com ela vou estar, porque, ao contrário de ti, conseguiu crescer e mudar.

Sei que lhe continuaste a mentir, quando não silencias, porque já não sabes o que lhe dizer.

(João mais que Tudo, onde está a Liberdade e a Justeza do que, em dias e noites animadas, nos quiseste convencer???)

Tão acossado, encurralado ficaste na tua própria malha, que construiste a tua própria prisão!

Mas também sei que a minha amiga o "lixo não vai varrer, que não o vai apanhar do chão"!
Aprendi, com ela, a ver como são cruéis as tuas histórias de encantar!
E a mim não me farás mais sorrir em vão.

P.S.: Por mim, pelo menos por mim, que tantas histórias soube escutar, sabe um dia pedir desculpa a todas essas mulheres que não soubeste amar, a quem mentiste e enganaste, e, por favor, nunca mais nos fales dos filhos intocáveis (expressão que tanto te ouvi ultimamente usar) e que não conseguiste deixar ... só te fica mal, porque eles mais não são que o nosso espelho e do que o exemplo de verdade que podemos e conseguimos mostrar. E do amor que lhe conseguimos dar.
Não os uses também, quando as coisas já não te estão a caber, já não te calham de feição!
Porque merecem os filhos de todos e quaisquer pais serem, de facto, respeitados, e não incluídos, engolidos, em teias de indecisão.
Certamente te lembrarás, nas histórias que viveste e tão humoristicamente nos soubeste narrar que também havia filhos de mães a quem envolveste com as tuas canções... e outros pais, amigos e casas a que(m) cuja intimidade, pelos vistos, não soubeste respeitar!
E é por eles, para eles, que estou a escrever: é preciso testemunhar.

Porque a minha amiga, sei-o bem, apenas dirá, de si para si, "bela oportunidade perdeste para crescer". Quase a consigo imaginar, bem mais serena do que eu, como sempre consegue ser.
Tentarei com ela aprender o que de ti não terei para narrar, pois no medo te conseguiste embrulhar.

3 comentários:

Anônimo disse...

Consegues pôr-me a pensar. É bem verdade, quantos de nós ocupamos o lugar de bobos da corte, enquanto temos quem ainda tenha ouvidos para nos escutar. E que do que dizemos saiba sorrir.
Mas crescer é também querer ocupar outro lugar.
Não sei a quem te referes, nem tão pouco importante é, uma coisa sei, a tua história pôs-me, de facto, a pensar .....

bettips disse...

Ajudas-te ...e ajudas o mundo a tonar-se mais solto, mais verdadeiro, pondo as coisas no seu lugar. É recorrente, sim, a história até divertida ou tocante, que deixa sempre vítimas e nem sequer tem grandeza de carácter. Serve a lição a quem quiser aprendê-la.
Um abraço de retorno às coisas simples. Ilhas que encontrarás.

A Lusitânia disse...

bettips, serão gravadas as tuas palavras