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segunda-feira, setembro 15

PORQUE NÃO É A MENTIRA UM PECADO CAPITAL?

    ANO 3                                 Edição 26 - Setembro 2014                                                                                                                                                                         INÍCIO                    contactos                  
Filomena Barata

PORQUE NÃO É A MENTIRA UM PECADO CAPITAL?

Pese a Mentira não constar dos Pecados Capitais, talvez porque ela é, infelizmente recorrente, dedicar-lhe-ei uma pequena reflexão nesta crónica que não pretende senão ser um alerta, ou mesmo um desabafo de uma comum cidadã preocupada com a emergência de “sociedades de imagem” ou do “espectáculo”, como bem as definiu Guy Debords (1931-1994), na década de sessenta do século passado.

Reconhecendo-se genericamente aos políticos um atributo, a mentira, para que, deste modo, exerçam sobre os outros uma forma específica de poder ou de controlo das sociedades, não gosto, contudo, de ver como se pode continuar a interiorizar essa conotação, pois descrer totalmente dos políticos é pernicioso: é desacreditar os fundamentos da Democracia, pois são eles que a representam através da escolha dos Cidadãos.

Pese a miríade de justificações para o uso da mentira nas acções políticas, desde as conhecidas como «razão de Estado» que são entendíveis, ou outras que tenham a ver com medidas impopulares, porque se teme anunciá-las com a antecipação devida, por se recear que as populações entrem em pânico ou se desintegrem equilíbrios sociais, a política pode ser, do meu ponto de vista, feita aproximando-se cada vez mais da Verdade e não o seu contrário.

Ou seja, o conceito de cidadania e de maturidade da Democracia deveria pressupor que ela não se consolidasse na imagem mais “ventável”, na crença em promessas governativas de um dado partido que constantemente acabam por se gorar, mas numa participação mais directa dos cidadãos que implica o conhecimento da realidade.

Para os Gregos, a Polis representa a essência da própria Democracia, e encontramos nos maiores filósofos e pensadores do Século de Péricles, muitas preocupações relativamente às questões éticas que deveriam formar o conceito de Política, sendo Platão com a sua «República» um expoente.

Aliás, a Ética (Ethos) é um dos grandes temas da reflexão humana desde os primórdios da filosofia, na Grécia Antiga, e em íntima ligação com a política, ao ponto de quase se identificarem, naquele momento da Antiguidade. A filosofia política era tratada dentro do grande capítulo da ética que, com a física (e a metafísica) e a lógica, compunham o quadro geral da filosofia na Antiguidade.

Por sua vez, a política, assume dois conceitos diferentes que convivem no tempo, na opinião dos cidadãos e na motivação da acção dos políticos: um é o de que a política, a mais nobre das ocupações humanas, é o empenho na realização do bem colectivo a que se destina, como o defendem Platão e Aristóteles, enquanto o pragmatismo dos sofistas e dos retóricos se empenha a pensá-la como um exercício de linguagem eficaz para manipular ou prender as assembleias e assim exercer as funções políticas.

Este outro conceito baseia-se na ideia de que a política «é a arte e a sabedoria de conquistar e de manter estável o poder; o fazer o bem; nesta visão, não é propriamente um fim, mas um meio de ganhar o apoio dos cidadãos para a conservação e a estabilização do poder, empregado em paralelo com outros meios também válidos, como o marketing, o controle da media, o clientelismo, o populismo e até mesmo a mentira, a violência e a corrupção. Este é o conceito derivado das interpretações mais correntes dos conselhos de Maquiavel e é o que melhor se enquadra nas concepções da ciência política moderna, entendida a ciência como conhecimento neutro, isto é, destacado de qualquer consideração de natureza ética», como define Roberto Saturnino Braga no seu blogue Ética e Política

http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/des_etic/3.htm

Esta visão pragmática é talvez a que mais moldou o conceito de Política do Mundo Ocidental, motivo pelo que a «Mentira» foi, muito provavelmente associada ao exercício do poder, pressupondo que o mesmo fosse enganoso.

O termo grego alethéia significa a verdade ou o caminho para a verdade, ou do esquecimento, pois lethe significa esquecimento. Platão, através da personagem de Sócrates acreditava que conhecer a verdade seria retornar aos conceitos esquecidos para a busca da verdade, pois as verdades estavam em nós esquecidas. O meio para que chegássemos à “verdade absoluta”.

Contudo, é também Platão que admite que a mentira seja permitida excepcionalmente na organização da Polis Justa, se fosse usada para enganar os inimigos ou a própria comunidade, desde que trouxesse vantagens para a mesma, ressalvando, contudo, que a MENTIRA só fosse permitida aos governantes por eles possuírem a Sabedoria necessária, pressuposto que, obviamente, não se pode transpor para os nossos dias. Também os médicos tinham direito, segundo o filósofo grego, ao uso da "mentira útil", aquela capaz de agir como um fármaco sobre os indivíduos e sobre a pólis em estado de doença.

Platão admitia, portanto, para sociedade perfeita uma estratificação social que deveria, como explicita na sua obra com “República”, ter um governo ideal, o do filósofo-rei (Correspondendo ao Ouro, à Sabedoria, Coragem e Temperança). A esse patamar – o da Contemplação e da Exposição das ideias que o Estado devia seguir – só se poderia ascender após décadas de preparação para o efeito, de forma a garantir que fossem escolhidos entre os mais dotados dos guerreiros e que tivessem sido submetidos a particular educação. Depois de terem passado a fase de Guardiães (Simbolicamente associados à Prata, à Coragem e à Temperança) fase em que se deveriam dedicar ao estudo e de trabalho em altos cargos públicos, Abaixo disso, encontrar-se-ia o Bronze, ou a fase de produtores.

Ora, a “verdade absoluta” não existe, pois não se trata de um “Ente” e todos a interpretação da realidade é sempre moldada pelos olhares próprios ou dos nossos conceitos e crenças, já a Mentira como exercício de poder e de manipulação pode tornar-se uma constante perniciosa que envenena relacionamentos e a própria sociabilidade.

Mas como infelizmente a Mentira é tão presente na vida do comum dos mortais, usada como sustentáculo da maioria das relações, aproveito o período do pós-férias, onde tantos simulacros de paraíso e de prestígio social ou de bem-estar se projectam, para fazer um repto: pensar a mentira, como mais um exercício de prepotência de alguns que sobre os outros (os que acreditam e os que, mentindo também, num processo de mimético, fazem crer que acreditam).

Porque poderia a Mentira ser um pecado capital? Porque, efectivamente, pode moldar todos os outros "Pecados Capitais", transmutando-se de forma substantiva em forma adjectival de todos eles?

Porque é que a Soberba, a Luxúria, a Ira, ou mesmo a Gula são tantas vezes meras subsidiárias da «Mentira»? Ou talvez sejam a sua consequência.

E, contudo, nada pode envenenar mais a vida do que a «Mentira» ou a «Não Palavra». Não digo a Palavra Não Dita, ou a omissão, mas, a «não Palavra», enquanto isso mesmo, enquanto o contrário do que é.

A mentira é o pecado por excelência, tendo sempre por companheira a cobardia, a desonestidade, a vaidade de se querer ser o que não se é, ou pânico do confronto de nós para nós e do sentir a pele e a Alma!

E a dúvida, mãe da descrença, não será também ela senão filha da ausência da "Palavra" ou da "Mentira"? E com ela, da ausência do gesto?

A mentira pode fazer elouquecer!

Deveria ser punível como outra coisa qualquer - é o roubo da alma de quem nela crê.

Não obstante, ao mentir, é a nós próprios que estamos a enganar. É a nós que estamos a falsear.

E, apesar de tudo, há quem se disponha sempre a acreditar na mentira, porque dela lhe advém algum prazer especial, algum proveito ou, pura e simplesmente, porque gosta de ser enganado e assim poderá enganar também.

Por isso, até o Senhor, O Senhor da Palavra e da Crença, precisou do valor da palavra e do gesto e disse «Por que estais aflitos e por que se levantam dúvidas em vossos corações? Vede minhas mãos e meus pés, que sou eu mesmo; apalpai-me e vede, porque um espírito não tem carne e ossos assim como observais que eu tenho. (e dizendo isto mostrou-lhes as suas mãos e seus pés). (...) Disse-lhes então: "Estas são as minhas palavras de que vos falei enquanto ainda estava convosco, que todas as coisas escritas na lei de Moisés, e nos profetas, e nos Salmos, a respeito de mim, têm de se cumprir" (...) haveis de ser testemunhas destas coisas.
(Lucas 24:39). Sagradas Escrituras.


Que o retorno das férias nos traga uma depuração especial