sexta-feira, junho 21

Solstício de Verão (reed. de 2013)




«(…)
Tens muita sorte
Em ninguém saber da partida
Que em mil setecentos e dezassete
Tu fizeste à Igreja constituída.
Estás, eu bem sei, cansado
Com o que a Igreja se intromete
Com a tua vida e o teu divino fado.

(E) foi então que, para te vingar
E à maneira de santo, os arreliar
Desceste mansamente à terra
Perfeitamente disfarçado
E fizeste entre os homens da razão
Um milagre assinado,
Mas cuja assinatura se erra
Quando em teu dia, S. João do Verão,
Fundaste a Grande Loja de Inglaterra
Isto agora é que é bom,
Se bem que vagamente rocambólico.
Eu a julgar-te até católico
E sais-me maçom.»


Fernando Pessoa.

In Jorge de Matos, O Pensamento Maçónico de Fernando Pessoa, p.101





Tinha passado toda a noite
ele mesmo se sentia perdido
diante dessa presença sem palavras
que lança trevas nos símbolos
e torna os argumentos
insustentáveis

é possível que resida nisto
sua parte mais importante
a partir deste ponto desaparece


José Tolentino Mendonça, Baldios, cit in Diário 2008, Assírio &Alvim




O Solstício de Verão marca o apogeu do percurso solar, como o Sol no zénite, no ponto mais alto do céu. Trata-se do dia da festa do Sol.

Dá-se a entrada do Sol no signo de Caranguejo.

O nascimento de S. João Baptista, a 24 de Junho, assinala, no mundo cristão, o solstício de Verão, enquanto o de Cristo corresponde ao solstício de Inverno. 
"Na tradição hindu, o solstício de Inverno abre a devayana, a via dos deuses, o solstício estival abre a otriyana, a via dos antepassados, que corresponde (...) às portas dos deuses e dos homens» (Chevalier, et alii, Diccionário dos Símbolos).


As festas de S. João são celebradas entre várias religiões e mesmo entre várias organizações iniciáticas, pois, para além da sua associação à água e ao Baptismo é também simbolicamente conotado com o fogo,  e o Sol, porque é através dele que tudo se vivifica, se reinicia um ciclo, integrando o anterior, mas passado pelas chamas purificadoras e regeneradoras.

É demais evidente através das suas palavras a ideia de uma passagem do Mundo das Trevas ao Mundo da Luz, motivo pelo que ainda nas festas populares também se salta à fogueira, queimando ervas de cheiro purificadoras.


O Fogo, esse Elemento que permitiu ao Homem evoluir enquanto espécie, fonte de energia que faz brotar a vida, renascendo diariamente, é considerado Sagrado desde a Antiguidade Remota e, quer na Antiga Grécia, quer em Roma,  guardado e transportado para as novas fundações, motivo pelo que, ainda hoje, os Jogos Olímpicos se iniciam com a entrega da tocha acesa. Os Solstícios que ocorrem quer no Inverno, quer no Verão, marcam mudanças fundamentais: são novos ciclos, tornando-se com cada um deles os dias mais longos e mais curtos, abrindo o Solstício der Inverno uma fase ascendente e o de Verão uma fase descendente.

Para as primeiras sociedades , a época das colheitas era  celebrada no dia mais longo do ano - O Solstício de verão, pois a sobrevivência durante o período invernal delas. Por seu lado, o Solstício de Inverno marcava a viragem para uma época de maior calor. Em Roma, os dois Solstícios são figurados através das duas faces de Janus, divindade das passagens, dos princípios e dos fins: uma face era de um jovem, símbolo do Futuro, e a outra a de um velho, símbolo do Passado e do ano que se prepara para o terminus a partir do Verão. Uma das faces dirige-se para a Luz e outra olha as Trevas, motivo pelo que a divindade era celebrada duas vezes por ano.


Não admira, portanto, que João, embora tenha crescido na Judeia, assuma também essa feição do romano Janus, que aqui se espelha em S. João Envangelista e em S. João Baptista.




E porque se aproxima o Solstício de Verão, o maior dia do ano, vou ver a luz serenamente poisar, pois a Lusitânia é, na Europa, o sítio onde ele se deitará mais tarde, não sei se rugindo como diziam os autores clássicos a propósito do Promontório Sagrado!





De acordo com certas variações do calendário grego – que diferiam amplamente por região e época – o solstício de verão era considerado o primeiro dia do ano. 
Vários festivais se realizavam nessa altura, designadamente o Cronia, que celebrava o deus da agricultura Cronos. 
O rigoroso código social era temporariamente suspenso durante o período de duração do Cronia, e até os escravos podiam participar das festividades em total igualdade, ou mesmo sendo servidos por seus senhores. O solstício de verão também marcava o início da contagem regressiva de um mês para o início dos jogos olímpicos.

Os Romanos nos dias que precediam o solstício de verão celebravam o festival de Vestália, que honrava Vesta, a deusa da família (conjuntamente com Juno zelava pelo casamento) e que protegia as mulheres e a virgindade. Os rituais incluíam o sacrifício de um bezerro não nascido retirado, portanto. do útero de sua mãe. Esta era a única altura do ano em que era permitido às mulheres casadas entrar no templo das virgens vestais que guardavam a chama sagrada e lá fazer suas oferendas.

quarta-feira, junho 13

À Antónia Tinturé que um dia inventou uma festa apenas com dois copos de cristal





Desenhos: Antónia Tinturé


É bem verdade que regressamos sempre a nós!

Dirias tu, no teu melhor catalão :
«si, tornem sempre a nosaltres»

Porque num livro também bate um coração ...
























Catalã de Lleida, nascida a 13 de Junho.
De Belas Artes, trabalha em conservação e restauro
Nunca se esqueceu de si e de continuar a desenhar (e tão bem)

Há muitos, muitos anos, vivemos juntas um dos mais belos bairros de Lisboa: o Campo Santana e conhecemos bem as Ruínas Romanas de Tróia.

E, muitos anos depois, fomos rever a "Caldeira", onde matámos saudades e pude observar melhor como ela desenha elhor do que nunca.
Como a reconheci, a mesma que me inventava em casa festas apenas com dois copos na mão!






Mas hoje é dia de lhe dar os Parabéns!





''Sermão de Sto. António aos Peixes'' (Padre António Vieira) dito por Ar...

sexta-feira, maio 25

A História de uma horta ... (cinco anos depois). À minha filha Mariana Lampreia!

Foto de Filomena Barata.



Já passaram cinco anos do dia de Maio em que me atribuíram uma parcela de terra, numa horta comunitária.
Lembro-me de nesse momento ter chorado de alegria, e comigo, nesse mesmo assomo de comoção, estava um vizinho nascido na Roménia a quem as lágrimas caíam cara fora, ao ponto de as ter que lamber.
A primeira rega do terreno foi assim salgada.
Para mim tão longínquos eram os anos em que me recordava ter podido crescer entre terras muito largas ;).
Hoje sei que só lá não vou quando não posso!
E as couves, as alfaces; as favas vão crescendo, mas só ao ritmo que bem lhes apraz.
Felizmente, ao local que me viu nascer também pude voltar. De lá trouxe uma mão cheia de terra vermelha que também plantei no meio da horta ;). Ali por perto é o sítio da nespereira que este ano já me presenteou ;).




 vida na horta: não há espaço nem tempo para parar!
Foto de Filomena Barata.
19.06.2012




Muito boa tarde




O meu nome é Maria Filomena Santos Barata, sou residente na Rua

............................................................




À entrada do meu prédio vi um anúncio que muito me interessou, respeitante a hortas ecológicas.




Uma vez que estou interessada em que me seja atribuída uma delas


também, muito gostaria que me informassem do que terei que fazer para

me candidatar, pois não me foi possível comparecer na reunião marcada

para ontem.




Grata pela vossa atenção, junto um link que um trabalho que ando a

desenvolver no Facebook, num Grupo denominado «Angola em Portugal;

Portugal em Angola» sobre as hortas, jardins e parques dos nossos

bairros, onde também constam vários espaços verdes de Odivelas.


http://aeppea.wordpress.com/2012/06/13/vamos-conhecer-a-vegetacao-e-a-fauna-dos-nossos-bairros/




Ficando a aguardar a vossa resposta, subscrevo-me,




Maria Filomena Barata
junho 1012 018.JPG

Passado quase um ano, em início de Maio de 2013, no dia 4, as hortas foram atribuídas por sorteio, pela Presidente do Município de Odivelas.








E, desde então, a vida não deixou de nascer, pois ninguém mais parou, cada um com o tempo e conhecimento que tem.

Cumprimento assim o Município de Odivelas por esta iniciativa e por ter tornado um espaço que era totalmente abandonado num local aprazível que todos agora podemos partilhar, vendo crescer o que cada um planta, mas partilhando também silêncios ou conversas, aos fins de tarde e horas matinais de fim de semana quem no bairro nem sequer se conhecia.



" Virgílio na sua obra didáctica sobre a agricultura, «As Geórgicas» que é um elogio da vida campestre, em harmonia com a natureza, símbolo da paz e da serenidade que se instala com a «Pax Romana» ao tempo de Augusto que reconciliou Roma a vida agrícola e a história dos seus antepassados, inicia o seu Livro , exactamente dedicado ao imperador, do seguinte modo:

«CANTEI!, até aqui, o amanho dos campos e os astros do céu; cantar-te-ei a ti, Baco, e contigo as árvores silvestres e a prole da oliveira, lenta no crescer. Vem, ó pae Leneu! Tudo aqui está cheio dos teus dons; em tua honra floresce o campo, carregado de pâmpanos outonais, e a vindima espuma nos lagares atestados. Vem ó pae Leneu! Descalça os conturnos e tinge comigo as pernas nuas no mosto novo! Antes de mais nada, direi que a natureza varia quanto modo por que cria as árvores. Na verdade, umas, sem intervenção humana, nascem expontaneamente, e cobrem ao longe os campos e as margens sinuosas dos rios, como o fime flexível, a branda giesta, o choupo, e os salgueiros brancos, coroados de verde folhagem; outros brotam da semente colocada pela mão do homem, como os altos castanheiros, o roble, que, sobraceiro às mais árvores, se veste de folhas em honra de Júpiter, e as carvalheiras que serviam de oráculos aos Gregos; a outras rebenta da raiz densa mata de pôlas, como sucede às gingeiras e aos ulmeiros, e também ao loureiro do Parnaso, que, pequeno ainda, se desapega da vasta sombra da mãe. Tais são os meios por que a natureza forma primitivamente as árvores: destarte verdeja toda a raça que povoa as florestas, os matagais de arbustos e os sagrados bosques» (Virgílio, Livro II, 1948: «As Geórgicas»).




A propósito de um trabalho dedicado à Fauna e Flora dos jardins, hortas ou parques dos nossos bairros, partilho este trabalho da minha filha : 

Era uma vez uma senhora de pele muito clara que se chamava Sr.ª Batata e era casada com o Sr. Laranja e viviam muito felizes e saudáveis, porque comiam muitos vegetais. Ela era muito velhinha, tinha 82 anos e o seu esposo 83. Ela e o seu marido tinham duas filhas: a Batanaura e a Cenoutata.
A Sr.ª Batata tinha muitos amigos com os quais gostava muito de conversar. Para além disso, adorava fazer crochet para que no Inverno toda a sua família estivesse quentinha. O Sr. Laranja passava os seus dias a ver televisão.
Dia após dia, a Sr.ª Batata levantava-se e começava a varrer a casa de cima abaixo e o seu querido maridinho sempre sentado a ver TV.
Este era mais um desses dias, até que a Sr.ª Batata lhe perguntou se ele a podia ajudar nas lides da casa mas o Sr. Laranja como era dependente da televisão, obviamente, disse-lhe que não. A mulher foi muito chateada para a cozinha e ele, arrependido da sua atitude, lá foi atrás dela dizer-lhe que não ligasse, que gostaria de a ajudar. Embora não o fizesse de vontade lá cumpriu a tarefa que lhe fora destinada e até foi ao supermercado.Uma vez feitas as compras, também decidiu que era ele que cozinharia o jantar: um belo peixinho fresco e saudável! A sua mulher e filhas reconheceram-lhe o esforço mas ficaram esfomeadas pois o Sr. Laranja percebia muito pouco de culinária. No entanto, este aparente esforço do Sr. Laranja foi sol de pouca dura e rapidamente regressaram os desentendimentos com a Sr.ª Batata de pele branca. De tal maneira se stressaram que adoeceram. As filhas mandaram chamar a Dr.ª Água e ela explicou-lhes que não se deviam preocupar porque por serem alimentos saudáveis iriam recuperar depressa. E assim foi!
Ambos recuperaram e perceberam que deviam chegar a um entendimento pois, sendo alimentos saudáveis, estavam preparados para fazer as pessoas felizes e para eles próprios viverem em harmonia e felicidade.Ideia original: Mariana Lampreia






















Foto: A vida a nascer!

Bom fim de semana.

Cit. a partir de: http://www.portugalromano.com/2013/02/as-especies-vegetais-e-animais-de-mirobriga/

" Virgílio na sua obra didáctica sobre a agricultura, «As Geórgicas» que é um elogio da vida campestre, em harmonia com a natureza, símbolo da paz e da serenidade que se instala com a «Pax Romana»  ao tempo de Augusto que reconciliou Roma a vida agrícola e a história dos seus antepassados, inicia o seu Livro , exactamente dedicado ao imperador,  do seguinte modo: 

«CANTEI!, até aqui, o amanho dos campos e os astros do céu; cantar-te-ei a ti, Baco, e contigo as árvores silvestres e a prole da oliveira, lenta no crescer. Vem, ó pae Leneu! Tudo aqui está cheio dos teus dons; em tua honra floresce o campo, carregado de pâmpanos outonais, e a vindima espuma nos lagares atestados. Vem ó pae Leneu! Descalça os conturnos e tinge comigo as pernas nuas no mosto novo! Antes de mais nada, direi que a natureza varia quanto modo por que cria as árvores. Na verdade, umas, sem intervenção humana, nascem expontaneamente, e cobrem ao longe os campos e as margens sinuosas dos rios, como o fime flexível, a branda giesta, o choupo, e os salgueiros brancos, coroados de verde folhagem; outros brotam da semente colocada pela mão do homem, como os altos castanheiros, o roble, que, sobraceiro às mais árvores, se veste de folhas em honra de Júpiter, e as carvalheiras que serviam de oráculos aos Gregos; a outras rebenta da raiz densa mata de pôlas, como sucede às gingeiras e aos ulmeiros, e também ao loureiro do Parnaso, que, pequeno ainda, se desapega da vasta sombra da mãe. Tais são os meios por que a natureza forma primitivamente as árvores: destarte verdeja toda a raça que povoa as florestas, os matagais de arbustos e os sagrados bosques» (Virgílio, Livro II, 1948: «As Geórgicas»).
E um ano passado da entrega das hortas, a 5 de Junho de 2014, os hortelãos juntaram-se às comemorações do Dia Mundial do Ambiente, uma iniciativa do Município de Odivelas, levando consigo alguns dos produtos ali cultivados.






domingo, dezembro 31

A minha mãe: A mulher da minha vida, pelo dia que era o seu (reed.)






















Se, de facto, as estrelinhas que há no Céu são os que partiram com a alma em paz, sei que brilharás como nenhuma.
Para mim és aquela a que chamam estrela, mas não o é: Vénus, a estrela da manhã. A primeira que se vê e a última a deixar de se poder observar. A Estrela d'Alva que a Mariana cedo aprendeu a reconhecer.


Nome: Maria Helena Antunes dos Santos Albarran Barata (a bela Helena de Tróia, mais conhecida por "linda", porque toda a vida assim lhe chamou o meu pai, o seu homem de toda a vida).


31 de Dezembro 1935 -10 de Janeiro 2005 (atravessou as Festas, para connosco ainda passar o seu último dia de Natal e o seu dia de anos, o 31 de Dezembro).


Toda a vida trabalhou e cresceu, tendo sido a única mulher do Banco de Angola em Malanje.
Toda a vida conduziu descalça em dias de calor fazendo estranhar, pelo pioneirismo, Malanje (Angola) que lhe conheceu os melhores anos.
Toda a vida amou
Toda a vida gostou de viver e sorrir
Toda a vida tomou chá, tantas vezes gelado, sentando-se nos degraus da casa que foi a da minha infância.






A minha mãe (segunda à direita, junto da minha avó. Em baixo, o primeiro à direita, o meu pai com a minha irmã ao lado. Eu estou com as tampas da panela na mão).


Os meus pais (do lado direito)

Toda a vida soube festejar, dançando com as amigas o Zorba ou a valsa da Meia-Noite com o meu pai.
Sempre aprumada e elegante, a ela nisso não consegui sair.

A minha mãe e suas duas filhas, em 1964, quando vi o Tejo pela primeira vez.

Toda a vida teve tempo para os seus.
Toda a vida teve preocupações sociais, o que a tornou uma convicta votante socialista, coisa que as filhas herdaram, cada uma a seu modo.
Sempre lhe vi um livro na mão.
Com ela teve até ao último dia o «Cavaleiro da Dinamarca» de Sophia de Mello Breyner Andersen, que quis ler e ouvir até que os olhos quase lhe fecharem.
Ela sabia que era apenas uma viagem que tinha que empreender!
Hoje eu ter-lhe-ia também juntado «A Casa dos Espíritos» e um livro de poemas de Florbela Espanca que me tinha emprestado.

Que saudades eu tenho de um café no Nicola, em dias de chuva, nostálgica que sempre foi da sua Lisboa, e de a ver meditar serena junto ao mar de Odeceixe, em posição de yoga e sorvendo o Sol.

Venha hoje a tua Força e a tua Luz para me acompanhar, porque crente sempre foi, mas à sua forma.
Sei que tanto falava directamente com Deus, como com o sol a pôr-se, pese a sua educação católica, como a maioria de nós.




Porque eu às minhas histórias vou voltar, sem medo de fantasmas ou sombras e sei bem que por aqui estás perto para me serenar!
E sei que te prometi ser feliz, tentasse as vezes que tivesse que tentar.


A minha mãe no Ambrizete 1958


A minha mãe (à direita) e a minha irmã (do seu lado, em baixo)


E sei que a partir de amanhã estará de novo junto ao meu pai para com ele poder jogar crapot no Céu.

Ao despedir-se, disse-me: «não sei porque estás assim. Quando olhares para a tu filha, lembra-te que nela corre um pouco de mim»! Hoje ouvi-lhe a voz, dizendo o mesmo, nesta casa onde vivo e que foi a sua.

Sei que talvez tenha sido a única vez que, verdadeiramente, lhe "obedeci".Nunca mais o esqueci. E sei também que a minha filha o ouviu, porque ainda hoje, logo passados uns minutos da meia-noite, ma perguntou «já deste os parabéns à avó»?

domingo, novembro 5

Fica apenas uma Gratidão sem tempo ...

«Sob a pele», de Filomena Barata


A partir de:


https://notascomentarios.blogspot.pt/2017/11/sob-pele-de-filomena-barata.html?showComment=1509884717638#c8712526448382508378


            Lê-se num ápice. Não apenas por ter 56 páginas em formato de livro de bolso, mas porque nos enleia de tal modo que, sem nos apercebermos, acompanhamos a Autora nas suas deambulações por terras de Portugal, por terras de além (ai essa Antuérpia que fundas cicatrizes lhe deixou!) e, sobretudo, pela Angola que a viu nascer, há precisamente 60 anos.
            60 anos que sentiram, ainda que em meio urbano e de classe média, os ecos da guerra que na sua Angola então se fazia «no mato». Ecos vivos, recordações bem presentes, porque plasmadas na infância e na juventude e facilmente, por isso, se evocam hoje os cheiros, os sons, os silêncios. 60 anos em que Portugal sofreu as transformações mais radicais e que na alma das gentes fundamente se repercutiram e, aos 60 anos, disso tomamos consciência plena, na certeza de que essas foram as marcas que nos moldaram lá e cá.
            Um solilóquio autobiográfico, sem dúvida, salpicado aqui e além daquele lirismo de que a história de Pedro e Inês sempre é capaz de ser matriz. Um solilóquio que, inesperadamente, se solta em diálogo:
            «Majestosas como as que tu e eu já vimos, junto ao Sumbe, e ainda bem maiores. […] Por vezes lá longe já, em águas mais tranquilas, passeavam-se hipopótamos com ar de quem nos queria cumprimentar» (p. 41).
            «Já semeei tantas noites de ti, ementando-te. Embaciando os vidros com a boca encostada à janela fria: crio-te e apago-te como o faço a mim própria. Para depois tudo recomeçar. Ficou-me a folha em branco, o papel e as noites sem fim. Não, já não as cubro inteiras com o teu cheiro que tanto quis reter. E, contudo, precisava de umas mãos que me afagassem o rosto agora» (p. 43-44).
            Lirismo contido, que – num relance – acaba por despontar, em desabafo:
            «Quem sabe o silêncio de uma lagoa onde se esconde uma vida inteira?» (p. 42).
            Prenhes de significado as descrições do quotidiano vivido em Malange na década de 60; pinceladas certas, as que retratam um Alentejo para onde Filomena Barata cedo foi batalhar:
            «[…] Esse espaço era tão, tão grande que nele havia também lugares cheios de esteva, infestando hectares e hectares, e outros, onde o montado teima em sobreviver, abrigando as “zorras” quando anoitece, e onde escavam tocas os coelhos bravios, sobrevoados pelas sobranceiras águias ao alvorecer» (p. 33).
            Louve-se o facto de serem raras as gralhas – os frades cistercienses rezam as Laudes e não as laudas, as benzeduras desfazem o quebranto… Mui eloquente o design gráfico, bem patente na capa, em cuja 1ª badana se semearam as fotos de um passado saudoso, onde não falta a avioneta que aprendeu a pilotar…, e onde se retrata a pele sob a qual, no livro, se espraiaram emoções, experiências fecundas («Resistir, continuar é o sítio de quem não quer parar» - p. 32).
            A apresentação foi no dia 26 de Outubro, no Museu Nacional de Arqueologia. O prefácio é de Luísa Amaral, em jeito de carta à Autora. Glória de Sousa, do Perfil Criativo (a editora), explica, na contracapa, que estamos perante uma «arqueologia do sentir», não apenas (digo eu) por Filomena Barata ser arqueóloga mas também – e sobretudo – porque de ‘sentires’ está bem impregnado o testemunho, meticulosamente escavado no mais profundo do ser.

            Cascais, 5 de Novembro de 2017

                                                           José d’Encarnação

quinta-feira, outubro 19

FORMAS DE IDENTIDADE

Pensando no Passado, falemos do Amanhã!
Prometheus Portugal
"Em torno de Prometeu "
1º sessão - 27 de OUTUBRO 2017
local: Teatro da Comuna | hora: 21h30
FORMAS DE IDENTIDADE
Convidados: Filomena Barata | Marta Loja Neves | Manuel Cândido Pimentel | José Pacheco Pereira .
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"Em torno de Prometeu "
são conversas que acontecem uma vez por mês (ultima sexta-feira), no Teatro da Comuna na Praça de Espanha.
Procura-se com estas conversas informais, trazer à luz temas significativos da actualidade ou visões que pensamos poderem vir a materializar-se num futuro próximo. Pretendemos no presente, visualizar o futuro, sem esquecer evidentemente as heranças do passado.
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FORMAS DE IDENTIDADE
Questionar-se-á o sentido de pertença. O que é ser português, ser monárquico ou republicano, ser de um partido, de um clube ou associação, ser democrático, ser nacionalista, ser xenófobo...
Quais as implicações da afirmação "eu sou" seja feita no sentido filosófico, religioso, partidário, ou por exemplo, quando afirmamos: eu sou um agnóstico ou eu sou um homem de ciência?!
Todas estas formas de ser serão analisadas à luz de uma Astrosofia transpessoal, implicando o entendimento da noção de "eu" até se alcançar uma consciência mais alargada, à escala planetária.
O conhecimento de cada Era astrológica pode também ajudar-nos a ver quais os modelos que a humanidade precisou de desenvolver para chegar ao estado em que se encontra e, a partir desse ponto, observar melhor tentando descortinar quais os modelos que se poderão desenvolver no futuro.
Onde está a identidade que procuramos e porque é que o mito de prometeu nos pode ajudar nessa busca?
Esta conversa tem a orientação de Luís Resina.

SOB A PELE




«Querida Amiga,
Quem somos hoje senão a memória daquilo que já fizemos e que já sentimos? Para grandes feitos, grandes memórias, portanto. Mas os teus feitos não são grandes no sentido em que o são os dos deuses e dos heróis. São antes os episódios comuns da história vivida por alguém que, condicionado às venturas e desventuras do destino, encheu de poesia e de imaginação as decisões que tomou. São, por isso, as tuas decisões que tornam grandes os teus feitos. Tu crês que não há um destino que te determine. Emprestas à vida que teces a riqueza de a construíres de acordo com as tuas convicções, apesar e a propósito dos acontecimentos que te transcendem.
Não escolheste a data, o local e a hora do teu nascimento mas soubeste ver neles matéria para honrares uma geração, uma pátria, uma família e os amigos. Amas uma origem que é a matriz de quem tu és. Sem ressentimento pelas perdas, recriaste essa origem com memórias cheias de fantasia e de beleza. E revisitas fisicamente e em devaneios a origem, como quem se revê desde o princípio, retendo aquilo que constitui o fio imaginário, condutor da tua coerência. Não poderias, portanto, ser outra coisa senão essa mulher generosa,
de esquerda, de História, arqueóloga do mistério do pensamento e da memória, transmutados nos objetos que os materializam.
Da infância e dos amores jovens retiveste a alegria, a vivacidade e a beleza, a poética “Inês” de um Pedro arquiteto da música e do Amor que teceste com ele, em fabulosas histórias de deuses e de faunos, de sons e de tons, de olhares lí-
quidos e claros de quem, gémeo do outro, neles se prende para sempre. O Pedro marinheiro que o mar levou para longe.
E sobreviveste. Transformaste outro acontecimento do destino na aprendizagem de que a vida nos traz surpresas para que com elas nos enriqueçamos. E amaste de novo na tua vida adulta, aprendendo que os olhares maravilhados só
se trocam com os Pedros arquitetos da música e do Amor.
Mais uma vez não desesperaste e alegraste-te nas amizades, nas leituras, na política, no trabalho e na escrita. Tiveste sucessos profissionais e tiveste uma filha, embora a ordem dos acontecimentos não seja esta. Na ordem do tempo, os filhos são o princípio, o meio e a eternidade.
Neste teu livrinho deixas-nos o testemunho da positividade do teu olhar sobre os humanos, quaisquer que sejam os seus defeitos quando produzem guerras, destruição, desamores e desapegos, porque neles vês um Outro de ti. E tu sabes que as forças telúricas que te constituem são também tecidas de construção, de amores e de apegos, de compaixão e de humildade, não fora tão rica a paleta dos deuses que te acompanham e que criámos à nossa imagem e semelhança.
Os teus grandes feitos? As amizades que construíste em tantas latitudes, a tua consciência cidadã, o amor de mãe e a sistemática dedicação à história dos deuses nas mentalidades.
Quem como tu sabe tudo dos deuses, sabe tudo da vida.
Sentada a um canto, observando, vais lendo o teu caminho e o daqueles que se te deparam, à luz dos poderes e dos erros dos deuses. Por qualquer coisa esperas, sem medo das surpresas.
Por isso se pode esperar de ti qualquer coisa, sem medo, porque essa coisa vem iluminada pela sabedoria divina que caracteriza a tua bondade. Este livro diz como».
Luísa Amaral


Inês tinha conseguido voar. Ali, naquele jardim. Mandava-se do alto muro, como eu fazia, braços abertos, do galinheiro que havia no meu quintal de menina. Era bem alto para a idade pouca. Abria os braços, simplesmente, e depois ficava a planar. A partir daí, toda a vida voou a sonhar. Por cima das árvores, das casas e das ruas da cidade onde habitara, ou dos campos de algodão. Sabia que o clima era húmido e que, no fim da viagem, o seu corpo era água densa escorrendo e as suas asas como as de Ícaro perdido. Uma espécie de poça que se formava à sua volta. Talvez o prenúncio do mar. Do céu e do mar.
Excerto do livro "SOB A PELE", Filomena Barata