quinta-feira, maio 8

À Bettips, pelas palavras partilhadas


A propósito do conceito de “diferença”: o apelo à palavra proferida

Se alguma "realidade" se instalou, nos nossos dias, em que estão mortas todas as "verdades", foi o direito à diferença.
Só por si, é um saco sem fundo, onde podem coabitar todos os gestos, valores, comunhões ou divisões.
O direito à diferença - direito de não ser igual?! - não baniu, no entanto, a ética.
Passámos da moral, enquanto valor universal, para a ética, que cada um tenta integrar no seu universo de actuação.
E como não há valores morais universais, passamos a ler os "outros" de uma forma desfocada (ou mais focada?). Não temos um padrão "real", senão o pessoal, para avaliar o"exterior".
E, não obstante, mais do que nunca proliferam, por um lado, as mitologias, as crenças e crendices de grupos de partilha, e, pararalelamente, os cepticismos e os desencantos: a cada um cabe gerir os seus numa unicidade solitária.
Há, residualmente, situações em que julgamos encontrar cumplicidades transpessoais - serão ainda nostalgias do tempo da "História das Verdades"?...
Mas se não as cuidamos como uma “essência”, um valor, já o tempo passou e semeou tudo e todos de particularizadas dúvidas ou renovadas desconfianças.
E se esta dispersão/explosão se instalou em atitudes diferenciadas face ao "real", somos quotidianamente confrontados com desdobradas formas de agir ou de ver.
Lemos os "outros", quanto muito, de acordo com a coerência possível da unidade ética que julgamos pertencer-lhes. Face ao desconhecido, ou algo distante, resta-nos ainda a projecção dos nossos íntimos desejos.
A palavra proferida é e continuará a ser, portanto, o único possível veículo de testemunho; mesmo que passível de multifacetadas descodificações: é através dela que ainda nos podemos entregar ao ajustamento do "real", enquanto aceitação da alteridade coabitada.(Será porque à palavra foi conferido desde o Genesis um papel sacralizado?...- vidé, de novo, o papel desempenhado na Criação pelas letras do alfabeto hebraico, segundo os cabalistas).
Quando se instala o silêncio... ficamos apenas entregues a conjeturar sobre as possíveis diferenças. Matamos os testemunhos ainda possíveis e atribuimos aos gestos o significado que nos parece mais "real".
Ficará, então, a escrita despida de sentido? Ou a palavra dita apenas mais uma simulação?!!! O que restará depois?


"Não posso escrever-me. Qual o eu que escreveria? ....à medida que entrasse na escrita, a escrita esvaziá-lo(s)-ia, torná-lo-ia inútil; produzir-se-ia uma progressiva degradação, na qual a imagem do outro seria, também ela, pouco a pouco arrastada (escrever sobre qualquer coisa ‚ prescrevê-la), um fastio cuja conclusão não poderia ser senão: para quê?"
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"Tudo o que eu poderia produzir melhor‚ uma escrita do Imaginário; e, para isso, ser-me-ia necessário renunciar ao Imaginário da escrita..."


Roland Barthes, Fragmentos do Discurso Amoroso

Instalação: Charles Sandinson (exposição «A Consistência dos Sonhos»

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