domingo, novembro 5

Fica apenas uma Gratidão sem tempo ...

«Sob a pele», de Filomena Barata


A partir de:


https://notascomentarios.blogspot.pt/2017/11/sob-pele-de-filomena-barata.html?showComment=1509884717638#c8712526448382508378


            Lê-se num ápice. Não apenas por ter 56 páginas em formato de livro de bolso, mas porque nos enleia de tal modo que, sem nos apercebermos, acompanhamos a Autora nas suas deambulações por terras de Portugal, por terras de além (ai essa Antuérpia que fundas cicatrizes lhe deixou!) e, sobretudo, pela Angola que a viu nascer, há precisamente 60 anos.
            60 anos que sentiram, ainda que em meio urbano e de classe média, os ecos da guerra que na sua Angola então se fazia «no mato». Ecos vivos, recordações bem presentes, porque plasmadas na infância e na juventude e facilmente, por isso, se evocam hoje os cheiros, os sons, os silêncios. 60 anos em que Portugal sofreu as transformações mais radicais e que na alma das gentes fundamente se repercutiram e, aos 60 anos, disso tomamos consciência plena, na certeza de que essas foram as marcas que nos moldaram lá e cá.
            Um solilóquio autobiográfico, sem dúvida, salpicado aqui e além daquele lirismo de que a história de Pedro e Inês sempre é capaz de ser matriz. Um solilóquio que, inesperadamente, se solta em diálogo:
            «Majestosas como as que tu e eu já vimos, junto ao Sumbe, e ainda bem maiores. […] Por vezes lá longe já, em águas mais tranquilas, passeavam-se hipopótamos com ar de quem nos queria cumprimentar» (p. 41).
            «Já semeei tantas noites de ti, ementando-te. Embaciando os vidros com a boca encostada à janela fria: crio-te e apago-te como o faço a mim própria. Para depois tudo recomeçar. Ficou-me a folha em branco, o papel e as noites sem fim. Não, já não as cubro inteiras com o teu cheiro que tanto quis reter. E, contudo, precisava de umas mãos que me afagassem o rosto agora» (p. 43-44).
            Lirismo contido, que – num relance – acaba por despontar, em desabafo:
            «Quem sabe o silêncio de uma lagoa onde se esconde uma vida inteira?» (p. 42).
            Prenhes de significado as descrições do quotidiano vivido em Malange na década de 60; pinceladas certas, as que retratam um Alentejo para onde Filomena Barata cedo foi batalhar:
            «[…] Esse espaço era tão, tão grande que nele havia também lugares cheios de esteva, infestando hectares e hectares, e outros, onde o montado teima em sobreviver, abrigando as “zorras” quando anoitece, e onde escavam tocas os coelhos bravios, sobrevoados pelas sobranceiras águias ao alvorecer» (p. 33).
            Louve-se o facto de serem raras as gralhas – os frades cistercienses rezam as Laudes e não as laudas, as benzeduras desfazem o quebranto… Mui eloquente o design gráfico, bem patente na capa, em cuja 1ª badana se semearam as fotos de um passado saudoso, onde não falta a avioneta que aprendeu a pilotar…, e onde se retrata a pele sob a qual, no livro, se espraiaram emoções, experiências fecundas («Resistir, continuar é o sítio de quem não quer parar» - p. 32).
            A apresentação foi no dia 26 de Outubro, no Museu Nacional de Arqueologia. O prefácio é de Luísa Amaral, em jeito de carta à Autora. Glória de Sousa, do Perfil Criativo (a editora), explica, na contracapa, que estamos perante uma «arqueologia do sentir», não apenas (digo eu) por Filomena Barata ser arqueóloga mas também – e sobretudo – porque de ‘sentires’ está bem impregnado o testemunho, meticulosamente escavado no mais profundo do ser.

            Cascais, 5 de Novembro de 2017

                                                           José d’Encarnação