domingo, agosto 26

Sim, quero ir ver o mar, depois de te falar de prisões (reed. JUN.2008)



mergulhar, mergulhar: agora quero olhar para fora
que o tempo está a melhorar.

Ao A.L. hoje, apenas como um repto
porque foi trabalho inacabado e espero que um dia o venhas a continuar.














Tu est bien gentil de dire ça (……)
Avant qu’on se couche

Vladimir Nobokov, Lolita

A ideia partiu de dois viajantes cibernautas. Conheceram-se um dia em que o cansaço da noite já os invadia. Picaram o chat, desportivamente, como quem quer ouvir as notícias, ou talvez nem mesmo isso. Quem sabe, apenas com num voyeurismo descomprometido, foram ver o que diziam as gentes no silêncio da madrugada.
Não; foram também dizer um olá e mais umas quantas charadas, com a vantagem de não saber bem a quem; de poder sair a qualquer momento, sem que ninguém desse conta ou levasse a mal. Era o Terravista, dos primeiros que conheci que tinha "salas" como esta que conheci da Filosofia. Havia-me indicado a minha irmã como forma de podermos comunicar economicamente, pois em Évora me encontrava a trabalhar, amigos quedando-se na capital.
E, embora hoje para ele não tenha paciência, é verdade que essa a grande liberdade do chat, como não há outro espaço igual: entrar e sair, sem ter que fazer “sala” ou que alimentar uma conversa indesejável; sem ter explicar ou justificar; sem ter que pagar uma factura, afinal!
Mas tudo tem os seus senões; e de tudo podem nascer, sem nos darmos conta, redes ou laços de seda que nos vão ligando. Na amálgama de palavras ditas há sempre algumas que nos prendem o olhar e a mente e que acabam por nos "agarrar".
Pois, assim é; há sempre uma ou outra palavra que, mesmo fugaz ou de rajada, se cruza entretanto com outra. E que, sem se dar conta, muito devagar, começa a constituir um diálogo; um conjunto de frases a que se dá sentido. Ou seja, começa a desenhar-se o compromisso da escrita; do código que, consolidando sentidos e significados, nos vai fazendo percorrer as ideias; nos vai burilando os conceitos.
Uma pergunta é recorrente, entre uma primeira sequência de palavras a que se pretende atribuir um denominador comum para o entendimento no chat: que te traz por cá afinal?
Resposta comum, quase fatal, como o destino, que lembra algo de adolescente: encontrar amigos, conversar. Entre os adultos – que há muito se julgam imunes a essas trocas infantis e, logo, à ilusão da partilha que a amizade traz, e que, por isso, elegem as salas de forma mais selectiva (a Filosofia; o Cinema, p.ex.) e usam o humor para escamotear algumas das suas solidões – as respostas costumam ser mais artificiosas também.
Estranha foi a resposta de um dos cibernautas e que acabou por ser o ponto de partida para a nossa conversa: sou reclusa, estou, por opção, numa espécie de prisão. Venho apenas aqui para tentar ver o que se passa do outro lado das portas.
E palavra cruzada com palavra dita, concluímos que cada um tem e as suas reclusões: umas consentidas, escolhidas ou aceites, mas nem por isso menos austeras na sua vivência, até porque o sentido e os objectivos dessas mesmas reclusões se esvaiem ou pulverizam tantas vezes em múltiplas dúvidas ou indecisões; outras, forçadas, aparentemente mais atrozes, mas cujo sentido punitivo acaba por ser mais aceite, mesmo que com a revolta dos dias.

Foi assim que nos surgiu a ideia de fazer um trabalho conjunto sobre as reclusões: dentro e fora de portas. Uma, porque conhecia as noites duras de um exílio quase dourado, no Alentejo, silêncios marcados por projectos que inventava para semear as noites de sentidos e de sentimentos; o outro, porque, como psicólogo, já tinha conhecido como “observador” activo o que se passa do lado de dentro das prisões.
Ambos sabiam que afinal nada conheciam da reclusão: apenas podiam aproximar-se de alguns dos seus contornos, porque a porta estava, afinal, aberta, sempre que desejassem sair.
Ambos sabiam também que para lá de alguns processos de iniciação que os poderiam ajudar a definir um estado, um estar, não havia marcada ou selada no seu corpo a tatuagem de uma verdadeira prisão. Não havia a vergonha ou o remorso de algum gesto irreversível, ou a haver, seria passível ainda de ser “reposto”.
Mas, no entanto, dispuseram-se a conversar sobre reclusão: como se sente, ou se escamoteia o que se sente; como se gerem os sinais e os códigos; como se articulam sentidos e os afectos; como se metamorfozeia o corpo e o pensamento; como se inventa e projecta a memória, num tempo que por vezes parece não ter tempo.

1. As reclusões consentidas, de todos os dias: as que nos confrontam com as nossas solidões; os nossos remorsos ou culpas; as nossas dúvidas, os nossos prazeres. Tantas vezes acabam, mesmo que inconscientemente, por tornar-se em prisões.
São ambivalentes estas reclusões: não te trata de abordar um presente como se fosse um hiato entre o passado e um futuro projectivo; não se trata de reviver, através de uma memória reinventada, docilizada ou esbatida, um passivo, inventando um amanhã; não se trata de um tempo fixado/marcado entre horas, dias e anos.
A reclusão consentida vive de um tempo contínuo, onde o Passado e o Futuro se esbatem num momento. Este, agora em que escrevo ou falo. É uma escolha para a qual, por vezes, já se perdeu o sentido, ou a motivação. É um estar que adormece o fluir do tempo, dando a cada momento a força do Eterno. Mas conviver com estas reclusões exige ter permanentemente a carne viva; o ouvido atento a cada som; crer e descrer nas palavras; no céu e no inferno. E, não obstante, continuar.
E,contudo, não há o fora e o dentro, porque se está sempre dentro e fora, ao mesmo tempo, porque é consentida a reclusão.

2. A reclusão forçada, como tal, fixa um pretexto e um sentido, por muito dura, perversa, “inumana” que seja, marca o tempo, mesmo que dentro dele se percam as horas. Atemoriza, claro está, porque inibe o “fora” , fixando-o em imagens mitificadas, que se projectam entre o terrorífico e o “Paraíso Perdido”, que um dia se alcançará de novo.

Assim, propusemo-nos a trabalhar:

Ideia 1.

A reclusão dentro e fora de portas

1.1. O espaço de reclusão como local de representação do poder e como local de todas as vivências.
(as cadeias; os conventos; as iniciações espaciais)

1.2. O espaço e os afectos

1.3. As memórias e a projecção da memória

1.4. A gestão "real" e ideal do tempo: o tempo imaginado e o tempo real.

À reclusão está associada, como mecanismo de sobrevivência, a uma certa ambivalência na gestão e controlo do tempo e da memória: por um lado, produz-se a saturação da informação, ou seja, há que “neutralizar um maior número de acontecimentos” (LYOTARD, 1997: 72), condensando os dados necessários e essenciais à “marcação do “antes”, do “agora” e do “depois. Por outro lado, há tendência ao esbatimento, ao “desculturamento” (GOFFMAN, 2003: 23), quando o projecto do “depois” parece demasiado longínquo ou mesmo ausente, é necessário diluir tudo, tornar o “agora” o “todo” e o mais despojado possível. Isto porque, por um lado, não há Futuro para condicionar o presente. É o despossuir/desapossar ou neutralizar o Tempo: não há lugar a uma narrativa prospectiva, a uma “história situada do outro lado”. Trata-se de um mecanismo contrário ao analisado por Lyotard, quando nos fala da narração mítica, onde o Mito e o “destino” encarnam a “existência de uma instância intemporal que conhece na sua totalidade a sucessão de momentos que constituem, individual ou colectiva”, (LYOTARD, 1997: 74).
Em reclusão prolongada há, por um lado, lugar à perda de capacidades para acompanhar as mudanças culturais do “exterior, produzindo-se o “desculturamento” (GOFFMAN, 2003: 23) e, por outro, a própria reclusão e os mecanismos de poder e de convivência a ela associados geram rupturas com o passado e alterações de personalidade, funcionando como “estufas para mudar pessoas” e de “profanação do eu” (GOFFMAN, 2003: 22 e 40)

1.5. O espaço e os sentidos

Poder-se-ia dizer que numa prisão, como normalmente é tratada no cinema, ou seja, como a imagina o comum dos mortais, há lugar a uma estética do sublime “esse prazer negativo que caracteriza de modo contraditório, quase neurótico, o sentimento sublime (...). as trevas, a solidão, o silêncio, a aproximação da morte podem ser terríveis ao anunciarem que o olhar, outra pessoa, a linguagem, a vida podem vir a falhar (LYOTARD, 1997: 91).
Há, nas visões cinematográficas, portas metálicas e ruidosas que se trancam; efeitos de claro-escuro que se exploram (o fora e o dentro); há seres que se apresentam na sua confrangedora condição, vestuário anulado pois não se pode ser o "um", nem o indivíduo. É-se um número apenas.
E há esgares e risos sarcásticos; há braços esticados por entre grades férreas: tudo é o limite e a ameaça paira no ar. Ao espectador oferece-se-lhe, assim, uma condensação das suas capacidades de emoção.

Mas afinal, e do outro lado, o que há na realidade?
Diria (Nino) ...................... qd. se chega a uma prisão o que mais impressiona é o som ...................
Instala-se a dramaticidade através do som. ................

Diria ele Nino, este é um TPC para ti.....................
Como dirias tu A.L.: «No entanto, a impressão inicial mais marcante não é visual, mas sim sonora. Dentro da prisão, todos os sons adquirem um timbre metálico. São as chaves, são as portas (e chaves e portas não faltam!), é o mobiliário, são os passos dos guardas, são as vozes que ecoam, são as chamadas pelo microfone – tudo adquire uma tonalidade nova face às paredes despojadas do edifício».

«As prisões e os campos de concentração são construídos para controlar os outros ou para os destruir. Os centros de interrogatório utilizam meios físicos específicos para destruir a resistência das pessoas de quem pretendem extrair as informações ou a aquiescência. Estes meios incluem a dor física directa, mas também o isolamento, a tensão contínua, a perda de privacidade, a desorientação no espaço e no tempo, o ruído, a luz, a escuridão, o desconforto permanente e estratégias de ordem física semelhantes» (LYNCH, 1999: 72).

Nas prisões é fundamental o controlo espacial dos reclusos e a gestão do seu tempo.

Existem assim, nas prisões, como locais de excelência da reclusão social, meios físicos que demarcam claramente os limites espaciais da exclusão e que garantem a manipulação da sua acessibilidade: os muros e outras barreiras, como as vedações, os portões, as grades.

Por seu lado, o controlo do tempo é demarcado de forma audível, de molde a uniformizar comportamentos novamente para destruir o indivíduo.

Nas “reclusões” consentidas, a gestão do espaço e do tempo faz-se de maneira totalmente díspar. Não há muros altos nem vedações a barrar-nos entradas e saídas: entra-se e sai-se quando se quer. As grades são, quanto muito, as clausuras que impomos a nós próprios; não há os outros que nos empurram para “dentro”, como “castigo” necessário à ruptura social que originámos (ou não), mas o dentro representa uma escolha; um desafio.
Não há apitos, nem microfones que nos regulem os movimentos e os minutos, mas apenas os sons ou a música que escolhemos ter por companheiros.

O conforto, mesmo que desconfortável ou austero, é fundamental a esse ritual.
Com isto quero dizer, que a reclusão consentida está intimamente ligada ao hábito e ao ritual: aos cerimoniais e à rotina das envolventes; às texturas; à luz; aos objectos ou ao seu despojamento.
Zela-se cuidadosamente para que pouco ou nada mude em nosso redor; para que a história construída se centre o mais possível nela própria. A história é afinal o texto que se lê ou que se escreve; a música que se ouve quando tudo à volta é silêncio. É o solilóquio que se instala nas palavras (não) ditas, enquanto a mente se “perde” em busca das suas múltiplas significações.
É a territorialização do tempo que se quer condensado/concentrado, «como num Templo, um TEMPLUM, este espaço-tempo neutralizado onde é certo que alguma coisa venha a acontecer, sabe-se lá o quê (LYOTARD, 1997: 186).
É nesse lugar sem paisagem cadastrada que se parte então para uma infinita viagem:
«No segredo do seu quarto, inscreve sobre nada, na intimidade do seu jornal, a ideia de uma outra casa, da vontade de qualquer casa» (LYOTARD, 1997: 200).

Para ler (entre tantos mais):

GOFFMAN, Erving, 2003, Manicómios, Prisões e Conventos, Editora Perspectiva (7ª edição).
LYNCH, Kevin, 1999, Arquitectura & Urbanismo, Edições 70, Lisboa.
LYOTARD, Jean-François, 1997, O Inumano: Considerações sobre o Tempo, Editorial Estampa, Lisboa.

sexta-feira, agosto 24

PORTUGAL NO FEMININO: AS CARTAS PORTUGUESAS (reed.)



Leonel Borrela A janela de Mértola, gradeada, grande, nada discreta... e antes, e agora, sempre intrometida no evoluir da História dos Homens e das Mulheres, principalmente destas. Uma janela apeada do dormitório novo, seiscentista, do convento da Conceição de Beja, aquando das demolições parcelares nele realizadas no final do século XIX. Um documento autêntico das Lettres Portugaises, atribuídas a Mariana Alcoforado, mencionado com indescritível emoção na quarta carta de amor da freira ao seu amado francês "Chamilly". Uma janela que é no fundo o símbolo maior de um amor proíbido, de uma paixão exarcebada e da ânsia de liberdade sem limites. Uma história que serviu artistas, escritores, políticos, dramaturgos, músicos, que preparou o romantismo, que serviu e serve a economia europeia e não só, uma história ainda polémica, com dois "protagonistas" -um francês e outro português. Isto tudo para dizer que as cartas são de facto maravilhosas... leiam-nas se querem conhecer o que pode ser uma paixão amorosa e desencantada, com, assim a julgo, um final feliz.




Hoje vou aqui deixar pedaços soltos das belas «Cartas Portuguesas» de Soror Mariana Alcoforado (1640-1723) que, mesmo sofrendo, tanto acabou por viver.
Viu as suas cinco Cartas publicadas em França, em 1669.

Não sei se sofreu por amor, ou se, simplesmente, amou o sofrer.
Mas talvez esta última opção lhe tenha dado força para se escrever.

Sei, sim, que tão bem descreveu o seu esperar, atitude que não pôde combater, porque, em Beja, no convento que lhe roubou o nome, a janela de Mértola era a única esperança para o olhar, fechada em quatro paredes, "sem outro horizonte que não fosse o seu amor (...) e o céu do Alentejo", parafraseando Eugénio de Almeida.
Nem a condescendência de D. Brites a conseguiu, desse modo, demover de sofrer, de esperar.

São fantásticas as Cartas Portuguesas, mas, felizmente, hoje, até dos conventos se pode sair.
E pode-se, de facto, ir, ver o mar, e não somente sonhá-lo nas searas que, da Torre castelo de Beja, do Lidador, se vêem, e cujo ondurar comparam à rebentação.
E sabermos também, agora, que O AMOR NÃO É INCONDICIONAL. Não é uma prisão ou retiro conventual. Mas apenas uma construção.

Só que nem esse ondular imaginado por Soror Mariana, nem esse olhar ela pôde ter...

Por serem belas as Cartas, neste Dia de Camões, vão pequenos fragmentos deste Portugal no feminino (se bem que, com tanto amor narcisico, chego mesmo a desconfiar, como alguns historiadores da Literatura Moderna, que também é bem possível que um homem as tenha escrito, para tanto e tão sofredoramente se fazer desejar, como tão comum é no mundo dos afectos masculinos!).

«Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa.
(...)
Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que és a única causa, já vou tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta.
(...) Como é possível que a lembramça de momentos tão belos se tenha tornado tão cruel' E que, contra a sua natureza, sirva agora só para me torturar o coração? Ai!, a tua última carta reduziu-o a um estado bem singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar. (...): recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que para ti a não posso guardar.
(...)
Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem me voltes a pedir que me lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança que me deste de vires passar algum tempo comigo (...)».
Carta Primeira

«Quanta inquietação me terias poupado se, quando nos conhecemos, o teu procedimento fosse tão descuidado como o é agora! mas quem, como eu, não se deixaria enganar por tantos cuidados, e a quem não pareceriam verdadeiros? Que difícil resolvermo-nos a duvidar da lealdade de quem amamos! Sei muito bem que te serves de qualquer desculpa, mas, mesmo sem pensares em dar-ma, o meu amor é tão fiel que só consente em culpar-te para ser maior o prazer em te justificar.
(...) Tu não estavas cego como eu, porque me deixaste então chegar ao estado a que cheguei? Que querias dum desvario que não podia senão importunar-te? Se sabias que não podias ficar em Portugal, porque me escolheste a mim para tornares tão desgraçada? Terias, certamente, encontrado neste país uma mulher mais bonita com quem tivesses os mesmos prazeres, pois só os de natureza grosseira procuravas; que te amasse fielemente enquanto aqui estivesses; que se resignasse, com o tempo, à tua ausência, e a quem poderias abandonar sem perfídia e crueldade. O teu procedimento é mais de um tirano empenhado em perseguir, que de um amante preocupado apenas em agradar. Ai!, porque tratas tão mal um coração que é o teu?»
Carta Quarta.

Gratamente, hoje o antigo Convento de Soror Mariana tem as portas abertas.
Da janela já não se consegue imaginar o que seriam as searas do Alentejo, espraindo-se para os lados de Mértola, como naquele tempo em que a freira Mariana o habitou.
Mas também por isso mesmo, tarde, mas a boa hora, o outro lado da rua habitada se pode ver!

E, vivamos o bafo benfazejo dos dias, porque hoje entramos e saimos daquele belo Museu Rainha D. Leonor.
E podemos, reitero, ir ver outro mar! Com o Alento que a brisa fresca sabe dar.
E não nos entregar ao sofrimento de amar, senão por poesia!