domingo, dezembro 31

A minha mãe: A mulher da minha vida, pelo dia que era o seu (reed.)






















Se, de facto, as estrelinhas que há no Céu são os que partiram com a alma em paz, sei que brilharás como nenhuma.
Para mim és aquela a que chamam estrela, mas não o é: Vénus, a estrela da manhã. A primeira que se vê e a última a deixar de se poder observar. A Estrela d'Alva que a Mariana cedo aprendeu a reconhecer.


Nome: Maria Helena Antunes dos Santos Albarran Barata (a bela Helena de Tróia, mais conhecida por "linda", porque toda a vida assim lhe chamou o meu pai, o seu homem de toda a vida).


31 de Dezembro 1935 -10 de Janeiro 2005 (atravessou as Festas, para connosco ainda passar o seu último dia de Natal e o seu dia de anos, o 31 de Dezembro).


Toda a vida trabalhou e cresceu, tendo sido a única mulher do Banco de Angola em Malanje.
Toda a vida conduziu descalça em dias de calor fazendo estranhar, pelo pioneirismo, Malanje (Angola) que lhe conheceu os melhores anos.
Toda a vida amou
Toda a vida gostou de viver e sorrir
Toda a vida tomou chá, tantas vezes gelado, sentando-se nos degraus da casa que foi a da minha infância.






A minha mãe (segunda à direita, junto da minha avó. Em baixo, o primeiro à direita, o meu pai com a minha irmã ao lado. Eu estou com as tampas da panela na mão).


Os meus pais (do lado direito)

Toda a vida soube festejar, dançando com as amigas o Zorba ou a valsa da Meia-Noite com o meu pai.
Sempre aprumada e elegante, a ela nisso não consegui sair.

A minha mãe e suas duas filhas, em 1964, quando vi o Tejo pela primeira vez.

Toda a vida teve tempo para os seus.
Toda a vida teve preocupações sociais, o que a tornou uma convicta votante socialista, coisa que as filhas herdaram, cada uma a seu modo.
Sempre lhe vi um livro na mão.
Com ela teve até ao último dia o «Cavaleiro da Dinamarca» de Sophia de Mello Breyner Andersen, que quis ler e ouvir até que os olhos quase lhe fecharem.
Ela sabia que era apenas uma viagem que tinha que empreender!
Hoje eu ter-lhe-ia também juntado «A Casa dos Espíritos» e um livro de poemas de Florbela Espanca que me tinha emprestado.

Que saudades eu tenho de um café no Nicola, em dias de chuva, nostálgica que sempre foi da sua Lisboa, e de a ver meditar serena junto ao mar de Odeceixe, em posição de yoga e sorvendo o Sol.

Venha hoje a tua Força e a tua Luz para me acompanhar, porque crente sempre foi, mas à sua forma.
Sei que tanto falava directamente com Deus, como com o sol a pôr-se, pese a sua educação católica, como a maioria de nós.




Porque eu às minhas histórias vou voltar, sem medo de fantasmas ou sombras e sei bem que por aqui estás perto para me serenar!
E sei que te prometi ser feliz, tentasse as vezes que tivesse que tentar.


A minha mãe no Ambrizete 1958


A minha mãe (à direita) e a minha irmã (do seu lado, em baixo)


E sei que a partir de amanhã estará de novo junto ao meu pai para com ele poder jogar crapot no Céu.

Ao despedir-se, disse-me: «não sei porque estás assim. Quando olhares para a tu filha, lembra-te que nela corre um pouco de mim»! Hoje ouvi-lhe a voz, dizendo o mesmo, nesta casa onde vivo e que foi a sua.

Sei que talvez tenha sido a única vez que, verdadeiramente, lhe "obedeci".Nunca mais o esqueci. E sei também que a minha filha o ouviu, porque ainda hoje, logo passados uns minutos da meia-noite, ma perguntou «já deste os parabéns à avó»?

domingo, novembro 5

Fica apenas uma Gratidão sem tempo ...

«Sob a pele», de Filomena Barata


A partir de:


https://notascomentarios.blogspot.pt/2017/11/sob-pele-de-filomena-barata.html?showComment=1509884717638#c8712526448382508378


            Lê-se num ápice. Não apenas por ter 56 páginas em formato de livro de bolso, mas porque nos enleia de tal modo que, sem nos apercebermos, acompanhamos a Autora nas suas deambulações por terras de Portugal, por terras de além (ai essa Antuérpia que fundas cicatrizes lhe deixou!) e, sobretudo, pela Angola que a viu nascer, há precisamente 60 anos.
            60 anos que sentiram, ainda que em meio urbano e de classe média, os ecos da guerra que na sua Angola então se fazia «no mato». Ecos vivos, recordações bem presentes, porque plasmadas na infância e na juventude e facilmente, por isso, se evocam hoje os cheiros, os sons, os silêncios. 60 anos em que Portugal sofreu as transformações mais radicais e que na alma das gentes fundamente se repercutiram e, aos 60 anos, disso tomamos consciência plena, na certeza de que essas foram as marcas que nos moldaram lá e cá.
            Um solilóquio autobiográfico, sem dúvida, salpicado aqui e além daquele lirismo de que a história de Pedro e Inês sempre é capaz de ser matriz. Um solilóquio que, inesperadamente, se solta em diálogo:
            «Majestosas como as que tu e eu já vimos, junto ao Sumbe, e ainda bem maiores. […] Por vezes lá longe já, em águas mais tranquilas, passeavam-se hipopótamos com ar de quem nos queria cumprimentar» (p. 41).
            «Já semeei tantas noites de ti, ementando-te. Embaciando os vidros com a boca encostada à janela fria: crio-te e apago-te como o faço a mim própria. Para depois tudo recomeçar. Ficou-me a folha em branco, o papel e as noites sem fim. Não, já não as cubro inteiras com o teu cheiro que tanto quis reter. E, contudo, precisava de umas mãos que me afagassem o rosto agora» (p. 43-44).
            Lirismo contido, que – num relance – acaba por despontar, em desabafo:
            «Quem sabe o silêncio de uma lagoa onde se esconde uma vida inteira?» (p. 42).
            Prenhes de significado as descrições do quotidiano vivido em Malange na década de 60; pinceladas certas, as que retratam um Alentejo para onde Filomena Barata cedo foi batalhar:
            «[…] Esse espaço era tão, tão grande que nele havia também lugares cheios de esteva, infestando hectares e hectares, e outros, onde o montado teima em sobreviver, abrigando as “zorras” quando anoitece, e onde escavam tocas os coelhos bravios, sobrevoados pelas sobranceiras águias ao alvorecer» (p. 33).
            Louve-se o facto de serem raras as gralhas – os frades cistercienses rezam as Laudes e não as laudas, as benzeduras desfazem o quebranto… Mui eloquente o design gráfico, bem patente na capa, em cuja 1ª badana se semearam as fotos de um passado saudoso, onde não falta a avioneta que aprendeu a pilotar…, e onde se retrata a pele sob a qual, no livro, se espraiaram emoções, experiências fecundas («Resistir, continuar é o sítio de quem não quer parar» - p. 32).
            A apresentação foi no dia 26 de Outubro, no Museu Nacional de Arqueologia. O prefácio é de Luísa Amaral, em jeito de carta à Autora. Glória de Sousa, do Perfil Criativo (a editora), explica, na contracapa, que estamos perante uma «arqueologia do sentir», não apenas (digo eu) por Filomena Barata ser arqueóloga mas também – e sobretudo – porque de ‘sentires’ está bem impregnado o testemunho, meticulosamente escavado no mais profundo do ser.

            Cascais, 5 de Novembro de 2017

                                                           José d’Encarnação

quinta-feira, outubro 19

FORMAS DE IDENTIDADE

Pensando no Passado, falemos do Amanhã!
Prometheus Portugal
"Em torno de Prometeu "
1º sessão - 27 de OUTUBRO 2017
local: Teatro da Comuna | hora: 21h30
FORMAS DE IDENTIDADE
Convidados: Filomena Barata | Marta Loja Neves | Manuel Cândido Pimentel | José Pacheco Pereira .
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"Em torno de Prometeu "
são conversas que acontecem uma vez por mês (ultima sexta-feira), no Teatro da Comuna na Praça de Espanha.
Procura-se com estas conversas informais, trazer à luz temas significativos da actualidade ou visões que pensamos poderem vir a materializar-se num futuro próximo. Pretendemos no presente, visualizar o futuro, sem esquecer evidentemente as heranças do passado.
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FORMAS DE IDENTIDADE
Questionar-se-á o sentido de pertença. O que é ser português, ser monárquico ou republicano, ser de um partido, de um clube ou associação, ser democrático, ser nacionalista, ser xenófobo...
Quais as implicações da afirmação "eu sou" seja feita no sentido filosófico, religioso, partidário, ou por exemplo, quando afirmamos: eu sou um agnóstico ou eu sou um homem de ciência?!
Todas estas formas de ser serão analisadas à luz de uma Astrosofia transpessoal, implicando o entendimento da noção de "eu" até se alcançar uma consciência mais alargada, à escala planetária.
O conhecimento de cada Era astrológica pode também ajudar-nos a ver quais os modelos que a humanidade precisou de desenvolver para chegar ao estado em que se encontra e, a partir desse ponto, observar melhor tentando descortinar quais os modelos que se poderão desenvolver no futuro.
Onde está a identidade que procuramos e porque é que o mito de prometeu nos pode ajudar nessa busca?
Esta conversa tem a orientação de Luís Resina.

SOB A PELE




«Querida Amiga,
Quem somos hoje senão a memória daquilo que já fizemos e que já sentimos? Para grandes feitos, grandes memórias, portanto. Mas os teus feitos não são grandes no sentido em que o são os dos deuses e dos heróis. São antes os episódios comuns da história vivida por alguém que, condicionado às venturas e desventuras do destino, encheu de poesia e de imaginação as decisões que tomou. São, por isso, as tuas decisões que tornam grandes os teus feitos. Tu crês que não há um destino que te determine. Emprestas à vida que teces a riqueza de a construíres de acordo com as tuas convicções, apesar e a propósito dos acontecimentos que te transcendem.
Não escolheste a data, o local e a hora do teu nascimento mas soubeste ver neles matéria para honrares uma geração, uma pátria, uma família e os amigos. Amas uma origem que é a matriz de quem tu és. Sem ressentimento pelas perdas, recriaste essa origem com memórias cheias de fantasia e de beleza. E revisitas fisicamente e em devaneios a origem, como quem se revê desde o princípio, retendo aquilo que constitui o fio imaginário, condutor da tua coerência. Não poderias, portanto, ser outra coisa senão essa mulher generosa,
de esquerda, de História, arqueóloga do mistério do pensamento e da memória, transmutados nos objetos que os materializam.
Da infância e dos amores jovens retiveste a alegria, a vivacidade e a beleza, a poética “Inês” de um Pedro arquiteto da música e do Amor que teceste com ele, em fabulosas histórias de deuses e de faunos, de sons e de tons, de olhares lí-
quidos e claros de quem, gémeo do outro, neles se prende para sempre. O Pedro marinheiro que o mar levou para longe.
E sobreviveste. Transformaste outro acontecimento do destino na aprendizagem de que a vida nos traz surpresas para que com elas nos enriqueçamos. E amaste de novo na tua vida adulta, aprendendo que os olhares maravilhados só
se trocam com os Pedros arquitetos da música e do Amor.
Mais uma vez não desesperaste e alegraste-te nas amizades, nas leituras, na política, no trabalho e na escrita. Tiveste sucessos profissionais e tiveste uma filha, embora a ordem dos acontecimentos não seja esta. Na ordem do tempo, os filhos são o princípio, o meio e a eternidade.
Neste teu livrinho deixas-nos o testemunho da positividade do teu olhar sobre os humanos, quaisquer que sejam os seus defeitos quando produzem guerras, destruição, desamores e desapegos, porque neles vês um Outro de ti. E tu sabes que as forças telúricas que te constituem são também tecidas de construção, de amores e de apegos, de compaixão e de humildade, não fora tão rica a paleta dos deuses que te acompanham e que criámos à nossa imagem e semelhança.
Os teus grandes feitos? As amizades que construíste em tantas latitudes, a tua consciência cidadã, o amor de mãe e a sistemática dedicação à história dos deuses nas mentalidades.
Quem como tu sabe tudo dos deuses, sabe tudo da vida.
Sentada a um canto, observando, vais lendo o teu caminho e o daqueles que se te deparam, à luz dos poderes e dos erros dos deuses. Por qualquer coisa esperas, sem medo das surpresas.
Por isso se pode esperar de ti qualquer coisa, sem medo, porque essa coisa vem iluminada pela sabedoria divina que caracteriza a tua bondade. Este livro diz como».
Luísa Amaral


Inês tinha conseguido voar. Ali, naquele jardim. Mandava-se do alto muro, como eu fazia, braços abertos, do galinheiro que havia no meu quintal de menina. Era bem alto para a idade pouca. Abria os braços, simplesmente, e depois ficava a planar. A partir daí, toda a vida voou a sonhar. Por cima das árvores, das casas e das ruas da cidade onde habitara, ou dos campos de algodão. Sabia que o clima era húmido e que, no fim da viagem, o seu corpo era água densa escorrendo e as suas asas como as de Ícaro perdido. Uma espécie de poça que se formava à sua volta. Talvez o prenúncio do mar. Do céu e do mar.
Excerto do livro "SOB A PELE", Filomena Barata

segunda-feira, junho 12

As festas populares



















No meu bairro periférico, como em muitos bairros de Lisboa, nas festas, as avós ainda são sacerdotizas e iniciam as netas e netos a dançar, enquanto os homens se encostam aos balcões a beber imperiais.
As mulheres ainda sabem dançar e, quando não têm filhos e netos que partilhem da "dança", abraçam-se sem pudor e lá vão elas bailar.
No meu bairro as mulheres não têm medo de exercer o poder matriarcal.
Enquanto os homens bebem ou jogam, como se nem vissem o que se passa em seu redor.

No meu bairro, felizmente em muitos bairros, ainda há festas onde as pessoas se juntam e onde vão dançar e ver se estão gostosas e gordas as sardinhas para comer com pão.

Sto António de Lisboa e «Uma Visita a Portugal» de Hans Christian Andersen (reed. 2012)




















E a cidade com o seu Santo António vai bailar.

Santo António de Lisboa
Lisboa-Pádua
1195-1231

«Exímio Teólogo e insigne mestre em matérias de ascética e mística", como o descreveu o Papa Pio XII.

O Santo que pregava aos Peixes, porque sabiam ouvir e não falar.

A propósito dos Santos Populares citarei H. C. Handersen na sua «Visita a Portugal», referindo-se aqui à cidade Setúbal, que foi visitar com amigos seus:

«Era festa de Santo António. Lá fora, na noite, flamejavam grandes archotes, alguns nas colinas até onde a vista odia alcançar, outros em frente das casas da gente do povo, nos jardins de laranjais. Rapazes novos e donzelas dançavam à volta da fogueira até de madrugada. Setúbal inteiro estava brilhante e glorioso, com archotes e mais archotes nas praças, nas ruas e ruelas. Subiam foguetes da cidade, das embarcaçõesm e até dos canaviais no areal, onde um marujo solitário ou pastor se encontrava por acaso.
O nosso vizinho Martins levou-me à cidade (...) para que pudéssemos assistir áquela glória flamejante (...). Chegámos num instante ao pé das luzes ofuscantesdas grandes pilhas de chamas diante dos edifícios; continuámos em frente até chegarmos ao meio da cidade; (...) quase rodas as pessoas andavam na rua, grandes multidões enchiam as ruelas, onde, num sítio ou noutro, havia uma figura de Stº António iluminada com lamparinas, ou um altar iluminado com velas em honra do santo. Uma procissão inteiramente constituída por gente do mar desfilava, seguida por mulheres e crianças, com cantigas e músicas de flautas, gaitas e tambores. Em algumas ruelas por onde tivemos de passar, não tiveram outro remédio senão seguir através das fogueiras. rapazinhos seminus divertiam-se a saltar por cima das labaredas; saltavam brasas de carvão e faúlhas em todas as direcções. Fogos de artifício e foguetes voavam por cima e até or baixo de nós; irrompiam, rabiavam e silvavam pelo chão (...).»

A Hans Christian e à sua viagem voltarei pelo S. Pedro.


Um Beijo de Parabéns à Antónia Tinturé, cujo nome é a versão feminina do Santo e se deve a ter nascido no seu dia.

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quinta-feira, abril 13

BOA PÁSCOA




Bom renascer, bom borrego sagrado servido à mesa.
Ou imaginado, para quem o não puder provar.
Restos tragados em dia de Pascoela, em barragens ou rios para bem sagrar.


Bons ovos da Páscoa, esses símbolos genésicos, para tudo conter.

O ovo cósmico que, identificando-se com o Andrógino, representando a plenitude da unidade fundamental e genésica, onde se confundem os opostos.
Círculo que contém o princípio e o fim.
Seja génese do Mundo fecundado pelo Sol, ou criação das águas primordiais que, ao separar-se, origina o Céu e a Terra. É através da partição, da divisão do ovo, desse círculo inicial, e do Andrógino primordial, que cosmicamente se cria, ou se diferencia a noite e o dia, o macho e a fêmea.
Por isso, para agraciar os Lares, era comum em Roma enterrarem-se ovos ou taças com ossos de aves, cuja significação, na essência, era a mesma.
Nos seus elementos decorativos, sagravam os Latinos esse ovo matricial.


Friso-cornija: Museu Monográfico de Conimbriga

Já Platão na sua obra «Banquete» relembra o mito do Andrógino, afirmando que o Homem original tinha a forma esférica, integrando os dois corpos e os dois sexos. São estas as suas palavras:
«... naquele tempo, o andrógino era um género distinto que, tanto pela forma como pelo nome, continha os outros dois, ao mesmo tempo macho e fêmea».

O ovo da Páscoa contendo assim tudo: a Primavera com tudo a nascer! É o Ovo Filosófico, "germe da vida espiritual".



A própria Bíblia, segundo o Génesis, ao assumir que Eva foi tirada de uma costela de Adão aceita que, na origem, todo o humano era indiferenciado e que o nascimento de Eva mais não teria sido do que a cisão do Andrógino primordial em dois seres: macho e fêmea. O retorno ao estado primordial, à unicidade primeira, em que se inclui a ideia de fusão do divino e humano, é para a maioria das religiões o grande objectivo da vida.













E recordo com saudades que, no Alentejo, no dias seguinte ao Renascer ainda se comem os restos do Borrego, junto à água, fazendo-se libações até ao sol pôr.

Assam-se silarcas e cantam-se modas aquecidas com vinho acre.
Quem me dera a Graça do Divor, mas contigo pela mão, pois dela não me sei separar, tal Andrógino inicial ...

Mas até lá ainda há que as provações passar, porque hoje qinda é Quinta, véspera do dia em que se cerram as portas apenas para pensar.


E lembro ainda velhos textos escritos para a Revista Setúbal na Rede, em 2015:


Aproveito este espaço que me é dado, para, em primeiro lugar, desejar a todos vós uma BOA PÁSCOA, neste período em que a vida renasce.

Agora que no Alentejo se prepara a Pascoela, esse dia em que junto aos ribeiros ou barragens se reúnem ainda as famílias para comer os restos do borrego pascal, celebrando as fontes de vida, como a água e o sacrifício depurador do animal, é época para tentarmos também dentro de nós fazer renascer um sentido de vida melhor, numa época em que diariamente a crise nos testa.

Esse mesmo cordeiro pascal, imolado na Bíblia, e que segundo na Mitologia Clássica era reportado a Ganimedes, que era guardador de rebanhos nas montanhas de Tróia quando o pai dos deuses Zeus, em pessoa ou em forma de águia, o raptou ou levou para o Olimpo, onde passou a desempenhar o papel de escanção do néctar dos deuses, o vinho. Também o vinho, a par do borrego e do pão faz parte da ceia pascal, pois  dessa refeição sagrada fazem parte o borrego, significando aqui o próprio Jesus, o vinho e o pão, o seu sangue e o seu corpo.

Esse borrego que o Cristianismo consagrou como alimento divino e que, para além de fornecer a lã que pasmará os romanos em Salacia (Alcácer do Sal), quase substituiu o porco alimentado a bolota, no período islâmico, é ainda um dos alimentos mais presentes na dieta alimentar do Alentejo.

Poucos dias passaram do Equinócio, essa palavra latina que aglutina dois termos Aequus, que significa "igual" e "nox", noite.
Isto é, inaugura-se a Primavera, altura que a noite e o dia passam a ter sensivelmente a mesma duração.

O Equinócio ou a chegada da Primavera é um momento celebrado em todo o mundo, desde tempos imemoriais, exaltando-se a natureza e a abundância, sendo-lhe dedicados festivais ao longo dos séculos.

A Cerealia era exactamente uma festividade em honra de Ceres, deusa das colheitas, que os romanos enquadravam no período da regeneração do equinócio da
Primavera, simbolizando o renascer da Natureza e a chegada período de fertilidade. A sua importância ao longo do tempo tornou-se bastante
visível, acabando por esta festividade ser adoptada pelos cristãos, coincidindo com o período que vivemos, ou sejam  da Páscoa.

Ao que diz a Mitologia, Prosérpina, filha de Ceres e de Júpiter, era uma das mais belas deusas de Roma e, enquanto Prosérpina apanhava flores no campo, surgiu
Plutão que a rapta e a leva para as profundezas da Terra, tornando-a sua esposa.
Ceres, sua mãe, procura-a desesperadamente, mas,  no entanto, porque ela havia comido sementes de romã, acabou por ficar definitivamente cativa, e foi mantida debaixo
e terra durante seis meses, até à Primavera, época de fertilidade e colheita, quando ela renasce e regressa para junto da mãe até ao fim
do verão.

Durante a Cerealia, eram famosos os jogos de Ceres (ludi cereales), que consistiam na procura de Prosérpina e eram representados por mulheres de branco que corriam com tochas acesas. Os jogos apresentavam atividades variadas nas quais os cidadãos poderiam participar.

Relacionados com a Páscoa cristã estão vários símbolos, desde o cordeiro pascal, a outros símbolos de filiação distante, como são o coelho e os ovos.
O coelho é um símbolo da fertilidade pela sua enorme capacidade de reprodução. Tal como a ideia da Páscoa é vida, ressurreição, é renascimento.
Já em período romano são conhecidas inúmeras referências a essa sua capacidade, ao ponto de ser considerada uma praga, como nos refere Plínio, « ... Ao género das lebres pertencem também os animais a que na Hispânia se chamam «cunuculi», de fecundidade inesgotável (...) Plínio, N.H., VIII, 217 ou mesmo Estrabão que se refere às  como «animais daninhos» : «Estes animais, como se alimentam de raízes, destroem plantas e sementes». (...) uma invasão (de lebres) deste género ultrapassa as suas proporções habituais e propaga-se como uma peste, ao modo das pragas de serpentes ou de ratos campestres» Estr. III, 2, 69.
Os ovos, (ou óvulos) representam o nascimento, a fecundidade ou a força genésica primordial, portanto, a própria ideia da vida, da eternidade ou da ressurreição, acabam por pertencer a um dos mais comuns motivos decorativos quer de bens de utilidade doméstica quer de elementos arquitectónicos: frisos; capitéis.
Ao que se sabe já era comum presentear as pessoas com ovos ornamentados na Antiguidade.
Os egípcios e persas costumavam tingir ovos com as cores primaveris e os davam a seus amigos. Os persas acreditavam que a Terra saíra de um ovo gigante, tal como na Mitologia Clássica onde se considera que o Universo surgiu a partir de um ovo Cósmico semelhante ao de um pássaro.
Ao que se sabe, os primitivos cristãos da Mesopotâmia foram os primeiros a usar ovos coloridos na Páscoa, representando a alegria da ressurreição.
Na Grã-Bretanha, costumava-se escrever mensagens e datas nos ovos dados aos amigos e em muitos países europeus, os ovos são oferecidos às crianças como presentes de Páscoa. Também eram decorados ovos ocos na Arménia com retratos de Cristo, da Virgem Maria e de outras imagens religiosas.
Mas muitos outros povos, como os chineses, os indus, finlandeses, japoneses, índios americanos, e mesmo povos africanos têm a sua cosmogonia derivada do ovo, a que se associa a ideia de fertilidade, nascimento e ressurreição, como se pode confirmar nos tradicionais ovos de Páscoa.

Por sua vez as aves e pássaros são considerados mensageiros dos deuses ou símbolo de verdades ocultas só ao alcance dos iniciados, motivo pelo que o deus dos viajantes, Mercúrio, na mitologia romana,(associado ao deus Grego Hermes)tem um capacete e pés alados. Esta divindade era mensageiro de Júpiter e deus da venda, lucro e comércio, pelo que é notória a associação do seu nome à palavra Mercadoria ("merx"), mas também dos ladrões. É também a personificação da eloquência e da inteligência. O planeta Mercúrio deve-lhe o nome muito possivelmente porque se move como a divindade rapidamente no céu.

Também entre os Gregos, da Noite, esfera imensa e oca, separam-se, como o desabrochar de um ovo, duas metades: O Céu e a Terra (Urano e Geia), de cuja união nascem os Titãs.

O mito do Andrógino, ou signo de totalidade inicial, é muitas vezes concebido como ovo cósmico, representa a plenitude da unidade fundamental e primordial onde se confundem os opostos, círculo que contém o princípio e o fim.

E é por esse motivo que há o hábito de oferecer ovos na Páscoa ou de os colocar sobre os bolos confeccionados nesta altura, pois a Primavera e o Equinócio são esse ciclo do RENASCER.


 Fragmento escultórico em estuque com friso de óvulos. Conimbriga


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Nas fotografias:
1 - No mosaico emeritense que se encontra actualmente a ser restaurado pelo Museo Nacional de Arte Romano está representado um coelho.
2 – Capitel com decoração com óvulos.


Parte superior do formulário


sábado, março 18

A Primavera chegará e com ela a Poesia (reed. de 2010)




Solte-se a rua, o véu, as palavras
ou o conjunto delas feito poesia

sopre o vento do dia, apenas igual ao seu par: o breu da noite sem luar
desamarre-se a nau
a bolina a encaminhará


mar adentro, longe a terra, mas constante ali, presente
a árvore, pedaço dela, noutros campos se plantará
música revolta, terra aberta, sulcada


grita finalmente a semente que aí irá brotar

venha depressa o alvor, venha o amanhã, perfurando o pombal.