quinta-feira, novembro 20

Breve Sonata em Sol (um) (Menor, claro)




A solidão da árvore sozinha
no campo do verão alentejano
é só mais solitária do que a minha
e teima ali na terra todo o ano
quando nem chuva ou vento lhe fazem companhia
e o calor é tão triste como é somente a alegria
Eu passo e passo muito mais que o próprio dia


Ruy Belo
Todos os Poemas, Poemário 2008, Assírio & Alvim


A ti ainda, afinal porque tanta solidão?

"Possuir" a terra foi, desde tempos pré-históricos, tocar a essência divina.
Adão, o primeiro dos Humanos, criado a partir do barro, é um ser orfão, porque apesar de Deus lhe ter concedido um espaço vivencial - o Paraíso - perde-o, ao gosto da tentação de Eva.

Torna-se num ser errante, sem domínio da terra de que fora criado, errância que a luta fraticida entre Caim e Abel irá acentuar, porque Deus disse a Caim, depois de saber do seu crime:

" Que fizeste? Escuta! O sangue de teu irmão está clamando a mim desde o solo. E agora, maldito és, banido do solo, o qual abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue de teu irmão. Quando lavrares o solo, não te dará de volta seu poder. Tornar-te- ás errante e fugitivo na terra".
Aos povos nómadas irão sobrepor-se as estigmatizadas civilizações sedentárias, a leste do Éden, que buscarão, sem nunca o encontrar, o Paraíso Perdido.
Pinturas rupestres do Neolítico e do Calcolítico atestam essa transformação, e os primeiros instrumentos de lavoura são representados como objectos de uma iniciação.

Desde então, passou o Homem a adorar a Terra, a Grande Mãe, o fértil Nilo e a cruel Ceres.
Os Gregos criam que no princípio havia a Noite e, ao lado, o Érebro, seu irmão, coexistindo no seio do Caos, o Vazio. Mas um dia Érebro desce e liberta a Noite, que se transforma numa esfera imensa. Das duas metades em que se separa nascerá Eros. Uma das metades será o Céu e outra a Terra. Da união de Urano (o Céu) e de Geia (Terra) foram criadas todas as essencias divinas: Titândes, Titãs e Ciclopes que viviam nas profundezas da Terra. Geia quis libertá -los e Urano não deixava. Um dia, quando Urano a envolvia, em concluio com o seu filho Crono a quem ofereceu uma foice muito aguçada , foram-lhe cortados os testículos. O sangue da ferida caiu sobre a terra e fecundou-a, ficando Crono a reinar sobre a Terra, transportando, também, consigo a maldição do seu crime.
Mas, pese esse estigma de um Paraíso, talvez nunca se tenha sentido o Homem tão deserdado e ameaçado no seu território como nos nossos dias, pois , como diria Baudrillard, já citado a propósito de uma outra reflexão, "A influência do meio urbano e industrial faz aparecer novas raridades: o espaço, o tempo. a verdade, a água, o silêncio..." (Baudrillard, A Sociedade de Consumo)

E até o "direito à terra" propagandeado e slogans como "a terra a quem a trabalha" acabou por contribuir, de forma inconsciente, para a dessacralização do espaço, como valor simbólico e ancestral, acentuando-o como uma mera mercadoria mensurável.
O Homem perdeu, de vez, a oportunidade de dominar a Terra... pois sem terra e sem tempo ficou entregue a si mesmo e só!
Mas nem por isso (ou talvez ainda mais por esse factor) deixou de a sonhar povoada de fantasmas, duendes, Titãs e Titânides.

Não lhe restando senão imaginar privacidades possíveis, em vivências individualmente demarcadas ou em feiticismos ancestrais, porque a isso relegou Deus os seres que um dia procuraram possuir a Terra ou o Fogo (v. Prometeu Agrilhoado , Ésquilo)!

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