segunda-feira, abril 8

Linda David, Quando o Guincho mudou de lugar


Quando o Guincho mudou de lugar.




Desceu a avenida com o Tejo ao fundo, o sol e o vento empurraram-na para Belém e um turbilhão de gente e de cores fizeram-lhe companhia. Descia devagar, queria sol, não porque gostasse muito do sol, ou da primavera, mas porque procurava um calor, um afago, talvez um abraço.
Gente, pastéis de nata, autocarros, sacos de plástico, máquinas fotográficas, vozes , caras de todas as cores e alegrias. Seguiu rumo à baixa, ao centro - procurava um centro, um banco. Disfarçava a dor. Ninguém a conhecia, ninguém saberia, ninguém perguntaria. Passou ao lado do Tejo, olhou o brilho do Museu do Oriente. Imaginou-se noutro mar, noutro rio. Imaginou-se outra pessoa. Longe. Continuou a andar com o Tejo, deixou o Cais do Sodré com a sua má reputação, subiu a rua do Alecrim, olhou para estátua do Eça, mais à frente conversaria com Pessoa, talvez Cesário Verde lhe fizesse companhia. Subia a custo,imaginava o que pensariam os estrangeiros que subiam consigo. Homens e mulheres de óculos de sol, mangas curtas, sorridentes. Sorria-lhes, explicou que a casa de Fernando de Pessoa ficava situada noutro bairro da cidade, mas que poderiam ver a estátua, beber um café, falou-lhes num inglês atabalhoado, recorreu ao francês, concordou com o brilho e a luz da sua cidade e acrescentou que se esperassem pelo entardecer poderiam subir atá ao Príncipe Real. Sentar-se num banco de jardim, olhar para Lisboa no miradouro que ficava um pouco mais acima. Veriam Lisboa com outra luz, ainda mais bela : a luz que só se vê em Lisboa. A cidade branca, luminosa. Aconchegante. Explicou-lhes o seu gosto. Agradeceram, pediram fado, falou-lhes no Bairro Alto, no Camané e na Ana Moura. Agradeceram mais uma vez. Quando se despediram tinham chegado à estátua do Chiado, estação do metro Baixa-Chiado. Indicou-lhes o largo de Camões. " Good bye". A Rua Garrett, barulhenta, apanhou-a desprevenida. No primeiro andar do "Paris em Lisboa" uma actriz lia O Manifesto Anti-Dantas. "Boa tarde, Almada,também andas por aqui?" Ficou a ouvi-lo: " Morra Dantas. Morra. Pim". Parou um pouco, decidiu sentar-se. "Um café e uma garrafa de água, se faz favor". Olhou em volta, a rua parecia um mercado a céu aberto. Uma feira com música, saltimbancos, acrobatas, um homem que cuspia fogo, Uma mulher com "rastas" que vendia colares. Um homem-tatuagem vendia fotografias. Carteiras, anéis e cintos de plástico reciclado. Muitas línguas. Muitas vozes e um céu muito azul. "Felizmente", pensou. Bebeu o café. Soube-lhe a café, soube-lhe bem. Gostou do movimento. Apreciou a multidão. Cheirou um charuto que ardia nas mãos de um alemão muito gordo. Ficaria ali sentada mais um café. A rua mudava, fazia barulho, mexia-se, muito apressada, às vezes, mais lenta. Mudava a cor, mudava a forma, mudava o cheiro. Sempre a mudar as caras que passavam na rua. Ficou mais uns minutos. Entardecia, mas a vida não arrefecia. "Teria preferido ir até ao Guincho? Ficar a ver o entardecer no Guincho? Ouvir o barulho do mar no Guincho? Não, não teria. " Entrou nos Grandes Armazéns do Chiado,ia à procura de um livro de poesia. A tropeçar nas pessoas, subiu a escada rolante e enquanto escolhia o livro pensou que nas últimas horas O Guincho mudara de lugar.

(José Tolentino Mendonça e Vergílio Ferreira pensaram o mesmo)



Fotografia de Stanley Kubrick



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