terça-feira, abril 2

Efeitos Secundários, Linda David

Linda David
Linda David

Efeitos Secundários



Entra no consultório médico.
Em desespero correu ao serviço de urgências do hospital de que era - como agora se diz - cliente. O médico fez o seu trabalho, perguntou, olhou, consultou o processo disponível, mandou fazer análises, tudo como manda o protocolo, tudo como deve ser. Saiu do consultório, sentou-se na sala de espera, esperou, a dor esperou com ela. Esperaram uma hora, pela noite dentro, a cadeira azul turquesa a achatar-lhe o corpo dorido. Foi à casa de banho, leu as dores no rosto dos outros. Inventou-lhes histórias. Ouviu as conversas. Ouviu os toques dos telemóveis, ouviu as conversas ao telemóvel. Impacientava-se. Uma hora é uma eternidade numa cadeira de hospital. A dor persistia. Insistia dentro de si. Ouvia a dor ao som do bater do seu coração. Era uma hora e quarenta e cinco minutos da madrugada do dia um de Abril. Irónico: o dia das mentiras, naquela sala de espera com dores tão verdadeiras. Lembrou-se do Mário Viegas, lembrou-se do Mário Viegas a dizer poesia num ecran pequenino a preto e branco. Mário Viegas morreu no dia das mentiras. Riu sozinha - tentava abstrair-se. Havia apenas quatro pessoas sentadas nas cadeiras azul turquesa. Finalmente, o médico chamou-a, não o ouviu, não identificou o seu próprio nome, andava, às voltas, com o pensamento nas pessoas que a alegravam, que não a deixariam sozinha numa cadeira de hospital. Ouviu o médico chamar em voz alta, quase ríspida, um nome: era o seu, levantou-se, de um gesto só, um pulo. "Então doutor? Desculpe, estava distraída. O resultado da análise? O que deverei fazer? O que se passa doutor? Há uma semana que tenho dores." Muito calmo, muito jovem, muito sereno, assertivo: "As análises confirmam a infecção. Mudarei o antibiótico, vou receitar-lhe outro analgésico. Se a situação se mantiver terá de ser reavaliada pelo colega que a acompanha.Tenha calma, em breve as dores passarão." Sorriu-me: "Boa noite e as melhoras". Saiu do hospital, depois de ter cumprido o que lhe exigiam. Pediu um táxi. Procurou uma farmácia, tentava ficar mais calma. A sua fé tinha o nome de um antibiótico. Em casa, sentiu-se segura, mais forte, mais quente. O sono demorou a chegar. No silêncio que a acompanhava, ouvia a sua própria voz. "Amanhã, daqui a pouco será outro dia, as dores desaparecerão, tudo voltará ao normal.Se calhar sou muito piegas, se calhar deveria suportar tudo isto com mais coragem.Seria isso - falta de coragem".
Adormeceu quase de manhã.
As dores só abrandaram (gostava desta palavra) muitas horas depois, continuam a fazer-lhe companhia, mas já as ouve muito ao longe. Do lado de fora - como um casaco que se veste e despe - o corpo cansado, muito cansado. "Quando fizer a sopa de espinafres talvez o cansaço desapareça".

("Fique descansada que este tratamento tem poucos efeitos secundários, poderá fazer a sua vida normal. É um tratamento sem riscos e sem dores. Vai ver. Em breve, se tiver cuidado estará curada." - dissera-lhe o seu médico no dia dois de Janeiro.)

- Obrigada, doutor. Tenho passado muito bem e ninguém diz que estou doente - esqueceu-se de me avisar que estas infecções são - apenas - um simples efeito secundário.
(talvez me tenha distraído durante a sua explicação, talvez.)

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