Filomena Barata
AS RELIGIÕES MISTÉRICAS NA ANTIGUIDADE - II
Retomo hoje o tema abordado na última crónica, as Religiões Mistéricas na Antiguidade, relembrando, porque voltaremos a falar de Deméter/Ceres e Perséfone/Proserpina, a oração já aqui citada em crónica anterior e que o escritor Apuleio do século II d.C. põe na boca do “asno” no seu «Burro de Ouro» que, em estado desesperado, faz uma prece à Lua, simbolizando todo um conjunto de deusas, entre elas as duas mencionadas.
E é exactamente porque estando nós na altura em que em Roma se havia acabado de festejar a Cerealia, ou seja os grandes festivais dedicados a Ceres, essa deusa das colheitas de que já falámos, que os romanos enquadravam no período da regeneração do equinócio da Primavera, simbolizando o renascer da Natureza e a chegada do período de fertilidade, que iniciarei novamente esta reflexão, pois a sua importância ao longo do tempo tornou-se bastante visível, acabando por esta festividade ser adoptada pela cristandade, coincidindo com o período que vivemos, ou seja da Páscoa.
Este festival, a Cerealia, onde mulheres vestidas de branco, procuravam pelas ruas de Roma Proserpina com espigas de trigo na mão, pois é ela que facilita a germinação dos cereais e as suas colheitas, pode filiar-se num outro que se realizava na Grécia Antiga, em Elêusis, dedicado a Deméter, denominado como as Tesmofórias que o comediante Aristófanes, no século V, jocosamente descreveu na sua obra «As Mulheres que celebram as Tesmofórias».
O mito de Proserpina e da sua descida aos infernos constituía o núcleo da celebração ritual desse festival, conhecida como o “mistério” de Elêusis.
Os aspirantes a ser iniciados nesses mistérios, na noite de 19 de Setembro, ou seja, no momento aproximado em que se dá o Equinócio do Outono, deslocavam-se de Atenas para Elêusis em procissão, com a cara tapada (“mistos” em grego).
Uma vez introduzidos no santuário ("telesterion"), tomavam uma poção sagrada ("kikeon"), uma espécie de droga obtida de um parasita do grão de cevada que também havia sido transportada processionalmente, num cálice ou "kratera", e sob o efeito da sua "euforia extática", ao amanhecer, era aberta uma cortina por onde entrava luz na sala.
Nesse momento os "mustoi" retiravam a venda e viam o sacerdote sair de um local oculto no templo, junto de uma sacerdotisa que nos braços levava um bebé, ao mesmo tempo que gritava “A divina Brimo deu à luz Brimos".
E, deste modo os "mustoi" (tapados) convertiam-se em "epoptai"
(ou seja, os que tinham visto). Quem pudesse participar ritualmente dessa “visão” viveria tranquilamente, esperando a morte de forma igualmente serena, pois sabiam que poderiam ascender com Perséfone e o seu filho Brimos, nascido nas profundezas, à vida imortal de Deméter.
É assim que Homero na “Ilíada” se refere a esta obtenção do “Eterno” através dos Mistérios de Elêusis: "Afortunado entre os homens terrestres o que os viu; pois o não iniciado nestes mistérios, o que deles não participa, jamais gozará da mesma sorte daquele, quando depois da morte, desça à obscuridade tenebrosa» (vv. 470-480).
Em Atenas, nesta mesma altura, celebravam-se outros festivais, as Anthesterias, um outro "culto mistérico" e suas celebrações orgíacas, cujo protagonista era Dionisos-Baco e as Bacantes, as sacerdotisas, mas que trataremos em próxima crónica, pois hoje recordaremos uma outra divindade que foi figura fundamental do Panteão Romano, o deus da Saúde, Esculápio, que se relaciona ainda com o mito de Deméter de Perséfone.
Escupálio, na designação latinizada, foi uma divindade solar, da medicina e da cura, herdado directamente da mitologia grega, onde tinha os mesmos atributos.
Filho de um casamento entre o deus Apolo e uma mortal, Coronis, segundo nos descreve o poeta Píndaro (522-443 a.C.) parece ter sido retirado do ventre de sua mãe à hora da sua morte, representando assim a vitória da vida sobre a morte.
Tendo nascido como um mortal, aprendeu a medicina, tratando-se de conhecimentos mágicos, com o centauro Chirón e uma serpente ensinou-lhe como usar espécies vegetais para dar vida aos mortos.
Assim Esculápio, adquire do centauro todo o ensinamento sobre o corpo e de seu pai Apolo as leis do Espírito.
Os templos/santuários de Esculápio tinham no seu interior uma espécie de labirinto, onde era guardada a serpente, símbolo telúrico e da vida que renasce e se renova, ou seja da Transformação, motivo porque ela se enrosca no bastão de Esculápio, pois é o bastão que dá à divindade a capacidade de curar.
(Cont.)
Mas a serpente é também o símbolo da Sabedoria, se entendermos a Vida como um processo ou caminho de provações onde aprendemos, mas que também se pode perder se não a aceitarmos, desse modo transformando-se num veneno mortal.
Por todos estes atributos, as serpentes são marcantes dos mitos gregos muito arcaicos: o mito-elemento de Laocoonte, a antiga Hidra de Lerna, que lutou com Hércules, a serpente do mais velho oráculo de Delfos, entre outros, sendo também um dos animais associados ao culto de Mitra de que falaremos em próxima crónica.
Diz ainda a mitologia que o facto de Esculápio não ser um deus, mas detentor de profundos conhecimentos em medicina que lhe permitiam dar vida aos mortos causou algumas perturbações no Olimpo, ao ponto de enfurecer Zeus, o pai dos deuses, que não via com bons olhos o facto de Plutão perder os seus mortos. A sua atitude era encarada por Zeus como sobranceria, pois tomava-a como uma vontade de se tornar um deus, motivo porque o fulminou com um raio.
Apolo, seu pai, inconformado, atacou os Ciclopes, ferreiros que segundo a mitologia só tinham um olho, pois haviam sido eles a executar o raio usado por Zeus.
Perante este facto, Zeus decidiu admiti-lo entre os deuses, mas como punição transformou-o na constelação Ofiúco.
Ao que consta, o seu culto terá começado em Epidauro, mas espalhou-se em muitos outros santuários, a exemplo de Kos, Knidos e Pérgamo, onde os sacerdotes que se dedicavam à cura diziam-se ser seus descendentes.
Deve ter-se introduzido em Roma por volta do final do século III a.C., tendo acabado por tornar-se uma divindade de grande veneração em muitas das províncias do Império.
Os seus santuários passaram a ser locais de cura e tratamento, obtido através da interpretação dos sonhos e da incubatio, ou seja, da indução do sono com a ingestão de ervas.
Ao que parece em todos os santuários haveria um templo, uma fonte purificadora, uma zona de termas, jardins, um teatro, ginásio, uma biblioteca, pois parece que a cura implicava aspectos físicos, mas também espirituais.
O processo de cura, processava-se assim através da purificação na fonte do santuário e através de sacrifícios, sendo feitas oferendas à divindade, como bolos de mel, bolos de queijo e figos. Mas também eram feitas preces, praticando-se o canto de hinos sacros, banhos medicinais, exposição à luz do sol, caminhadas de pés descalços e outros exercícios, bem como uma dieta especial, abstinência de sexo e exercícios físicos. À noite o paciente era dirigido para o seu compartimento “abaton”, onde dormia e se produzia a “enkoimesis”, ou "incubatio", ou seja, a revelação do deus em sonhos. O sonho era então revelado aos sacerdotes, que o interpretavam. Caso a cura fosse efectiva, deveria agradecer-se com um novo sacrifício, então geralmente era oferecido um galo ou mesmo dinheiro. Também podia ser um ex-voto, uma obra de arte, a exemplo de uma estátua, ou mesmo uma obra literária, como um poema que homenageasse a divindade.
Em Miróbriga, Santiago do Cacém, há uma base de estátua onde há uma inscrição dedicada a Esculápio por um «Medicus Pacensis», não havendo, contudo prova de que ali tenha existido um Santuário, propriamente dito, pois as estruturas arqueológicas conhecidas fazem crer a existência de uma cidade com as características comuns às provinciais romanas.
Pelos efeitos curativos de que era dotado, Esculápio tornou-se o patrono dos médicos, fazendo-se representar como um homem barbudo, apoiado por um cajado envolto numa serpente, o caduceu, como acima se referiu e que se tornou também o símbolo da medicina.
Segundo outras lendas do mesmo mito, terá sido Esculápio a relatar a Hades o facto de Proserpina ter ingerido sementes de romã, quando Zeus lhe havia permitido regressar a terra, mas na condição de nada ter comido, motivo pelo que teria que voltar parte do ano, para junto de Hades.
Curiosamente, na Mitologia Grega, a romã foi usada para simbolizar a alegoria das estações do ano e do ciclo anual das colheitas, motivo desta associação a Perséfone que se assume como Koré, a eterna adolescente, regressando na Primavera depois de ter passado metade do ano e o com Hades.
Mas também Hera, esposa de Zeus, ostentava na sua mão uma romã, simbolizando a fertilidade, o sangue e morte.
O seu sumo é considerado o sangue do deus Dionísio e segundo a mitologia havia sido Afrodite, a deusa do amor, a plantá-la na terra.
Contam-se ainda outras versões do mito e o escritor Apolodoro refere que Deméter não terá gostado muito disso, pelo que foi punido, transformado em lagarto manchado ou “askalabos” e sido enterrado sob uma enorme pedra, até que Heracles a terá removido e a mãe de Perséfone/Proserpina, o volta a transformar, mas desta feita, em coruja ou mocho, “askalaphos”, animal também associado à sabedoria.
Podemos assim relembrar que a ideia de “cultos mistéricos” pressupõe aspectos iniciáticos ou mágicos do culto e mesmo de elementos adjuvantes do mesmo culto que intercedem ou auxiliam as divindades nos atributos que lhes são conferidos, motivo pelo que, pela época do ano em que nos encontramos, desejo que Ceres e todas as divindades associadas ao Renascer tragam uma Primavera com mais Luz e Fertilidade para todos nós, num momento de grandes dificuldades que atravessamos.
Para maior aprofundamento sobre os tema tratado, recomendo a leitura de:
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