A todas as mulheres (ou homens) que sofreram violência.
Ela acordara novamente com dores de dentes. Com a sensação de não ter dormido, senão por horas e em sobressaltos.
Lembrara os anos em que não tinha direito a que lhe desejassem «Bom Natal»; «Feliz Ano Novo» e muito menos que lhe dessem os parabéns. E que lhe diziam que estava tanta coisa mal feita ou imperfeita.
Sonhava acordada com os momentos que inventava sozinha para se sentir, mesmo assim, feliz, esquecendo insultos, mentiras, omissões e traições. Usando as letras para escrever histórias.
Ela acordava, julgando ter ouvido o telefone tocar e as palavras suaves que desejaria escutar.
Descobria, nessas alturas, que tinha estado a sonhar. Porque o real era bem outro: eram as culpas de tudo e de nada; do trabalho se ele pudesse brilhar; dos amores que tinham existido e dos amantes que nunca tinham sido reais; dos fascínios a que jamais se tinha rendido. Isto misturando-se com estranhas palavras «mas ninguém te amará como eu».
E ela quase queria acreditar naquele bizarro amor.
E depois ficava o silêncio soturno e castigador.
Mas ela continuava sempre, mesmo quando revia tudo isso, todos os dias; todas as noites, tentando ainda entender.
E recordava também o dia/os dias, em que o seu corpo tinha sido um saco de boxe, onde se abateram fúrias que nem hoje conseguia explicar.
Lembrava-se sentada num sofá a chorar convulsivamente, perguntando: merecia eu isto? Uma faca brilhava numa mesa e rodou, dando voltas a si mesma, sob o movimento controlado de um dedo.
Apenas ouviu uns sons, «és capaz de te calar, ou queres continuar a falar». Sim, calou-se, e muda ficou por uns dias mais...
Até que acordou realmente. Esqueceu os dentes que doíam, as manchas escuras que haviam ficado na pele; as insónias.
Nesse dia gritou, tanto e tão alto que o seu grito atravessou o mar. E disse: nenhuma espécie de prisão é superior a mim.
Virou as costas. Guardou as forças da revolta agora transformadas numa enorme serenidade e continuou mais decidida do que nunca.
Sabia que seria feliz! Porque ia apenas sossegar.
Um comentário:
A dor tem um lado perverso - talvez belo e poderoso - que transforma em arte, as lágrimas que o corpo chora. Não se perdoam,as dores,pelo contrário, eternizam-se,pelos riscos que permanecem, pela memória que constrói.
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