domingo, maio 13
À Bettips, pela palavra escrita, como construtora de História (reed. de 2008)
Algumas reflexões sobre «Património» (I de III) -
«Às vezes, como náufragos, precisamos de nos agarrar a uma reminiscência banal, para evitarmos que tudo se dissolva
na falsa enunciação da memória, na sua trágica encenação
de efeitos sem correspondência com a realidade».
António Mega Ferreira, Amor, Lisboa, 2002.
dos mecanismos da memória...
Se para os Humanos enquanto vivos a Ciência foi felizmente criando mil e uma soluções que contribuem para um melhor-estar físico ou psicológico, já para a comunidade médica se torna tão melindrosa a questão da eutanásia, ou seja o momento exacto em que se decide pela vida ou pela morte de alguém, mesmo que da vida apenas já exista um sopro.
A delicadeza sobre a decisão da morte de alguém, sobre essa intervenção irreversível/definitiva, é tão grande que, metaforicamente podemos dizer, estamos a colocar nas mãos dos Humanos uma capacidade que só aos Deuses e ao «destino» deveria caber: porque com a morte física sucumbe o gesto e a palavra que se proferiu, ou não, no momento exacto, e ainda porque com a morte física tememos o esquecimento e a não acessibilidade ao Eterno.
Ora se bem que acarretando com a mágoa da morte de alguém, do seu desaparecimento e dos momentos que se partilharam juntos, o indivíduo, ou a comunidade que lhe era próxima podem criar mecanismos ou rituais de recordação, já ao tratarmos memórias mais alargadas o processo é bem mais multifacetado.
Ou seja, se para a preservação das memórias individuais temos ainda uma certa tranquilidade, pois remetem a um processo em que a cada um cabe escolher, ou ter a capacidade de o fazer, sendo a triagem do se quer e se pode guardar, sacralizar ou esquecer, um caminho pessoal, no qual o indivíduo se socorre dos «auxiliares de memória» materiais ou imateriais próprios, quando equacionamos a preservação dos bens colectivos a decisão é mais complexa, até porque é exactamente de âmbito «comunitário».
Para além dos factores que se prendem com as memórias de um local, ou da relação íntima que se estabelece com algo ou alguém a que nos habituámos - será que não é também isso que enforma a História? - os aspectos simbólicos ou emblemáticos que a eles estão associados deverão, portanto, ser avaliados.
da memória colectiva...
A própria eleição do que é um bem cultural e a afinidade que com eles sente uma determinada comunidade, ao ponto de não o querer perder, é já por si difícil de caracterizar. O uso que se faz com esse bem, como se manipula, se utiliza ou se preserva coloca, portanto, questões de uma complexidade acrescida.
Exactamente porque muitas das decisões sobre a morte física de alguns bens culturais implicam alterações no espaço, nas simbologias e nas sociabilidades, cujos contornos nem sempre são previamente avaliados; e ainda porque, em contrapartida, muitas das conclusões sobre a preservação das memórias colectivas acabam por ser casuísticas e aleatórias, até porque perdidas estão muitas das necessidades ancestrais de marcação física e simbólica do território ou da sua georeferenciação, exige-se cada vez mais uma reflexão sobre o que, como e porquê, conservamos. Isto porque não podemos querer conservar ou reabilitar apenas cenários ou simulacros de antigas vivências, se perdidas forem todas as outras necessidades socio-culturais e afectivas a que davam resposta.
Porque afinal, em última instância, o «Património» não existe como entidade objectiva, ausente da memória.
Se tivermos em atenção que ao fenómeno de democratização das sociedades correspondeu uma certa perda de ideologia e da respectiva representação historicizante ou monumentalizante das comunidades e do poder que as representa ou subjuga, perda essa que já não permite responder com modelos tão deterministas à necessidade de projecções simbólicas, mais questões se nos levantam sobre a função da História e da preservação dos seus vestígios físicos ou imateriais.
Até porque a esse mesmo processo de democratização e de complexificação social que ela implica corresponde também uma proliferação de símbolos e de formas de representação do poder e do querer e um esbatimento do valor intrínseco de alguns emblemas historicizantes.
(F.B. in Revista de Estudos, IPPAR)
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Um comentário:
Sempre a memória colectiva, boa ou má deveria fazer a sua inscrição na História=Conhecimento, lição para um Futuro, espelho para os vindouros, independente de novos símbolos "democráticos" e não sujeita a ideologias ou religiões. A preservação de memória também se ensina. E nem sempre por doutores: como sei eu que a flor do cardo se usa para coalhar o leite e fazer o queijo? Ah...já a vi, há décadas, lilás e solta, em sacos de serapilheira, nas feiras nas vilas perdidas por aí. E aí perguntei: ensinaram-me.
Obg.
Bjinho
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