http://www.incomunidade.com/v22/art12.php?art=12
Filomena Barata
Lisboa, Abril de 2014 (adaptado e actualizado a partir de «Folhas
soltas: O Meu Testemunho», in: http://aeppea.wordpress.com/filomena-barata-folhas-soltas-o-meu-testemunho/ e http://www.bubok.pt/livros/4585/Folhas-Soltas--O-meu-testemunho)
Tentei pensar muito fundamentalmente no que representava o 25 de Abril
para mim, e julgo que para tantos que o viveram como eu em Angola, país onde
nasci.
Não é fácil, creiam, pois se pudesse assim resumiria que ainda hoje me
debato entre a perda da infância e adolescência e a crença, ou seja, os valores
em que acredito. Refiro-me à crença profunda na Democracia e numa sociedade
mais justa, algo que ainda está por atingir, em Angola e em Portugal.
Sinto que vivo, por isso mesmo, numa ilha no meio do Atlântico, ou que
talvez ainda não lhe tenha chegado, apesar de há tanto tempo nadar. Uma ilha
onde guardo as memórias de menina em terras distantes e onde estão, ao mesmo
tempo, os princípios ou pilares que me fizeram e fazem continuar.
Retenho um livro, por que me foi oferecido num dia de aniversário, um
dos mais belos que li nos últimos tempos «As
velas ardem até ao fim», onde o autor, Sándor
Márai, diz a determinada altura:
«Toda a gente que passou um tempo mais longo
nos trópicos, é suspeita (...). Porque passou por esse contágio terrível, ao qual
é impossível a gente habituar-se e em que há algo fascinante, como em todos os
perigos de vida. Os trópicos são uma doença. É possível a gente curar-se das
doenças tropicais, mas dos trópicos nunca».
É verdade, sinto esta frase como se pudesse ter sido escrita para mim.
Em tempos idos e de triste memória, chamavam às pessoas que como o meu
pai, que só não nasceu em Angola por mero acaso de uma vinda de sua mãe a
Portugal, brancos de segunda. Terminado felizmente o estigma de um Estado Novo
que nem os seus tratava bem, vividas as alegrias de um Golpe de Estado que para
tantos daqueles que como ele desejavam mudanças, seguiu-se uma guerra tremenda
entre irmãos e, catapultado para o país dos seus ancestrais, passou a ter, como
eu, como milhares de nós, um estranho e triste nome: “ retornado”, adjectivação
com que, não o escondo, nada simpatizo. E não simpatizo com o nome, quer usado
erroneamente para aqueles que assim eram denominados, nem para quem assim os
apelidava, pois representava algo de segregacionismo, porque Abril ainda somente a palmilhar os primeiros
passos, não conseguira isentar-se. O olhar desconfiado para quem chegava de
outros lugares.
Gostaria de poder partilhar convosco de experiências anti-regime, mas era tão jovem, pese a consciência já não estar adormecida.
Em surdina ouvira falar da adesão do meu pai ao Humberto Delgado, que
distribuíra panfletos, um ano após o meu nascimento, pois a sua candidatura
havia mobilizado a oposição em Angola. Apenas sei que, segundo um belíssimo
blogue que encontrei sobre o tema, na Província do Congo, em Angola, votaram
100 brancos pela causa, num conjunto em que 2.189 pessoas votaram Américo
Tomás.
De referir que, tal como em Portugal, o universo dos recenseáveis era
pequeno, pois exigia-se a condição de saber ler e escrever, excluindo assim,
quase toda a população negra, motivo pelo que, diga-se que razoavelmente, para
essa população, as eleições, eles eram considerados pelos nacionalistas negros
de «brancos para brancos». Em Angola, já em 1960, foram referenciados apenas
37.873 pessoas, do Grupo de negros e mestiços, recenseados.
No momento das eleições de Humberto Delgado, na totalidade, o Universo
de recenseados foi apenas de 56.298 pessoas, sendo o número de votantes de
32.654 pessoas. O resultado foi de 22.294 votantes em Américo Tomás e 10.360 em
Humberto Delgado.
Contudo, à época, em Angola, só Portugueses deveria haver aproximadamente
200.000 residentes e claro está, que nem todos tinham idade de votar.
Mas goradas as expectativas que alguns acalentavam, desejando
mudanças, pois acreditava-se que com a sua vitória traria maior autonomia e desenvolvimento
para as “colónias”, embora o seu programa pouco mais protagonizasse nessa
matéria do que «actualizar praticamente a integridade tradicional ultramarina,
cujos fundamentos são: a unidade espiritual, política e económica da população
portuguesa de aquém e além-mar, e a igualdade de direitos de todos os seus
constituintes», pouco acrescentando no que se refere ao relacionamento com o
mundo colonial, para além do que respeita à sentida falta de política para os
vários territórios portugueses, à ausência de um plano de fomento e autonomia,
baseado nas potencialidades energéticas, técnicas, demográficas e económicas
sem o que, era impossível estruturar solidamente a unidade nacional dos
territórios portugueses”, usando as palavras do autor do blogue. Humberto
Delgado - As eleições de 1958 em Angola e no Quitexe.
Certamente pelo que aconteceu em Portugal, com a vitória esmagadora de
Américo Tomás e o malogrado destino de Humberto Delgado, silenciados ficaram os
anseios de alguns dos que acreditaram que algo poderia melhorar sem recurso à
guerra. Mas o Governo Central, sediado em Lisboa, manteve-se alheio aos sinais
do mundo, designadamente em Goa, e nem a pressão das elites dominantes em
Angola, no sentido de tentar uma maior autonomização das colónias não conduziu
a qualquer resultado.
E assim, logo em 1961, começa a luta armada pela Independência, a
partir do ataque frustrado do Movimento Popular para Libertação de Angola
(MPLA), de orientação marxista, a três prisões de Luanda, na tentativa de
libertar líderes nacionalistas. Entretanto, em 1962, diferenças culturais e
políticas dividem o movimento pela Independência, dando origem a que Rebeldes
do Norte formem a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA),
anticomunista. Foi exactamente na zona onde fora concebida, hoje N’Zeto,
outrora Ambrizete, a guerra contra a potência colonial rebentou nesse mesmo
ano, deixando desprevenidas as populações brancas que lá viviam, a tal ponto,
que recordo as noites de recolher obrigatório, em que homens guardavam em
armazéns mulheres e crianças, as armas que conheciam eram das usadas na caça.
Foi depois dessa altura que os meus pais se deslocaram para Malanje,
onde vivi toda a minha adolescência, cidade planáltica e onde da guerra pouco
se ouvia falar, à excepção das que os soldados regressados do mato acabavam por
contar.
Poderia tentar contar-vos que a minha adolescência tinha sido passada
entre jogos de aprendiz de menina e de mulher, pois Angola deixei já com 17 anos feitos e que oiço ainda, por
vezes, os sons da infância! Barimbaus, batuques, marimbas e noites de rebita,
semeando-se no ar. Ou o barulho das imensas quedas de água do Duque de
Bragança, hoje Kalandula, das Quedas do Kuanza ou dos Fortins da Rainha Ginga.
Mas não, não é este o lugar e nunca correria o risco de dizer que por lá, por
aquelas partes do Império, o mundo estava bem. E não, nem tudo estava bem, todos
o sabemos!
Em Angola, sabíamos também, embora o palco de guerra fosse no mato e
tantos o quisessem ignorar, que desde 1961, a morte podia ali, nas mãos de
angolanos revoltados com a situação colonial, nos movimentos já organizados e
em luta contra os Portugueses.
E foi em Malanje, nessa cidade aberta e vivida mais na rua do que em
casa, que já adolescente, tive a sorte de conhecer um jovem militar que jamais
esquecerei, mas que a vida infelizmente ainda não me permitiu reencontrar, o
António Martinho, que me ajudou a canalizar a revolta que sentia adolescente,
quando via camiões cheios de homens contratados e que, como gado, atravessavam
empilhados a cidade. Eram conduzidos para as Grandes Fazendas da Baixa do
Kazange, onde o algodão em grandes extensões fazia lembrar a neve a muitos, uma
realidade muito dura para quem era quase pertença dos fazendeiros.
Ele ensinou-me que em Portugal havia, na clandestinidade, pessoas que
se opunham ao regime e chamou-me a atenção, de uma forma mais sistematizada do
que a forma intuitiva como já me revoltava, para os soldados, tão jovens como
ele, que iam para África combater. Aprendi ainda o que era a revista «Seara
Nova», o movimento de «Largo do Rato» e despertou-me para as lutas travadas nas
Universidades em que participara, nomeadamente no Instituto Superior Técnico.
Aprendi assim também o que queria dizer falar de convicções!
E ainda hoje recordo as vezes que com ele ouvi «O Soldadinho não volta
do outro lado do mar».
Falou-me da sua experiência no "mato", em Zala, no Norte de
Angola, e que havia muita gente a morrer para que a paz morna dos meios urbanos
se mantivesse e para que pudesse florescer a riquíssima arquitectura moderna
que enxameou as "restingas litorais" de Angola ou dos fabulosos
edifícios e espaços públicos de lazer com que me habituei a conviver desde
menina, como cinemas, piscinas e tantos outros lugares.
O que me foi contado era de arrepiar de tal forma, que nos fazia
pensar se seria efectivamente assim ou não, pois homens fechados em
acampamentos militares eram entregues ao que o medo e a guerra conseguem fazer.
Mas de tal forma devia ser a violência do vivido, que cheguei a
conhecer soldados, que de tal modo, alucinados pela prolongada estada no
"mato", passeavam camaleões a quem davam estatuto de confidentes e
companheiros de infortúnio. Um deles que tão bem conheci acabou por suicidar-se
um dia, porque não aguentou as memórias da guerra e a ausência de cartas da
namorada que havia deixado na "Metrópole" e que o acabara por
esquecer.
Com essa idade aprendi tanto, que me julguei quase mulher. Aprendi o
que era a guerra, mas soube também o que queria dizer o amor; o que era perder
pessoas e ganhar outras mais.
Um dia, célebre dia de 24 de Abril de 1974, uma amiga, um pouco mais
velha e também atenta às notícias de Portugal, desceu a minha a rua apitando e
gritando: houve um golpe de Estado! Lembro-me de ter saltado de alegria, ainda
sem saber o que tinha acontecido.
Mas acreditei, não me perguntem porquê, que algo de bom ia passar-se.
Sei que festejámos, mesmo assim sem saber bem porquê.
Mas, um outro dia, nem um ano depois da festa que todos julgámos poder
também pertencer-nos, a guerra bateu-nos mesmo à porta, pois nem os Acordos de Alvor
que o governo português promovera, em Janeiro de 1975, abrindo negociações com
os três principais movimentos de libertação (MPLA – Movimento Popular de
Libertação de Angola, FNLA – Frente Nacional de Libertação de Angola e UNITA –
União Nacional para a Independência Total de Angola), que visava criar um
governo de transição e o processo de implantação de um regime democrático em
Angola (Acordos de Alvor, 31 de Janeiro de 1975) lhe puderam valer. Em
Fevereiro de 1975 iniciaram-se os ataques, a guerra, em Luanda, onde na altura
me encontrava a estudar com a minha irmã. E em Fevereiro o MPLA iniciou a luta
contra os outros movimentos e, em meados de Julho, já tinha conseguido expulsar
a UNITA e a FNLA de Luanda.
Revoltavam-se assim agora irmãos, uns contra os outros. Todos
desavindos. E aquilo que se rebelara contra a guerra colonial, tornava-se
agora, infelizmente, numa espécie de vingança étnica, claro que com conotações
políticas, tendo as várias facções o apoio de potências internacionais: a União
Soviética e principalmente Cuba apoiavam o MPLA, que controlava a cidade de
Luanda e algumas outras regiões da costa, nomeadamente o Lobito e Benguela. E,
em 5 de Outubro de 1975, os cubanos acabaram por desembarcar em Angola.
A África do Sul, por seu lado, apoiava a UNITA, União Nacional para
Independência Total de Angola, criada em 1966, formada por rebeldes
nacionalistas do Sul. A princípio maoísta (o líder, Jonas Savimbi, fora
treinado na China), a UNITA torna-se anticomunista e recebe apoio do regime
sul-africano do apartheid, que desde Agosto de 1975, passou a ter forças em
Angola. O Zaire, que apoiava a FNLA, invadiu também este país, em Julho de
1975. Os EUA, que inicialmente apoiaram apenas a FNLA, não tardaram a apoiar
também a UNITA.
Contudo, pese estes apoios, no dia de 11 de Novembro de 1975, Angola a
declaração unilateral da Independência e uma Nação de um partido único: o MPLA.
Soube um dia, por meados de 1975, que Malanje, onde continuaram a
viver os meus pais, também estava sob fogo. Ouvia rumores e rumores.
Desta feita, digladiavam-se ali, a UNITA e o MPLA.
A cidade onde vivera parte da infância e da adolescência, Malanje, foi
totalmente evacuada e com os restantes habitantes, a minha família, depois de
dias passados no Quartel, foi deslocalizada por coluna militar para Nova
Lisboa/Huambo. Foi um dos períodos mais difíceis da minha vida, pois as
comunicações foram totalmente cortadas e só um mês e meio depois, através de um
Radioamador, consegui saber deles.
Foi tal a mágoa e apreensão desse silêncio sepulcral, que ainda hoje
me dói quem silencia, sem saber o efeito que isso tem.
Mas vivos os soubemos no Huambo, até que a belicosidade não permitiu
novamente que se restabelecessem totalmente e, contrariados, pois acreditavam
que era possível ficar em Angola, acabaram por ser evacuados para Portugal,
tendo aterrado em Lisboa, por tramas que só aos deuses cabe fazer, no mesmo dia
que eu, que partira de Luanda, pois na sua mensagem me haviam recomendado que
abalasse também, deixando em Angola todos os seus bens, LITERALMENTE TODOS, e
muitas saudades, claro está.
Não vos falarei da enorme diferença de condições entre os que o
fizeram num primeiro momento e os últimos, pois como eu e meus pais, muitos
ficaram até quase final de 1975. Nem do desembarque de Cubanos ou de
Sul-africanos que vieram dar apoio a forças belicosas em confronto, dividindo
mui8tos de nós que em Angola queriam ficar. Ou do som dos morteiros ou das
Kalashnikov.
Ou dos insultos e ameaças que espíritos mais vingativos, acalorados
num racismo que a revolta alimentara, nos faziam diariamente na rua.
Foi a tudo isso, acrescido a um célebre julgamento popular, efectuado
em Luanda em Agosto de 1975, supostamente para servir de exemplo a violadores
ou chacinadores que me fez não aguentar mais e seguir as recomendações dadas
pelo meu pai. Caía por terra tanta da esperança que ainda tinha no MPLA.
Deste êxodo ou diáspora, segundo dados obtidos através do Jornal
Público desta semana, intitulado «Os últimos Filhos do Império» assinado por
São José Almeida, terão sido cerca de meio milhão de Portugueses que foram
integradas na sociedade entre o Verão de 1974 e o Verão de 1975, a última
geração de nacionais que viveram na África Colonial Portuguesa.
Nem tão pouco das mágoas, dificuldades ou mesmo injustiças, mas
poderei, como a autora deste artigo, concluir que genericamente foi uma
integração sucedida, pois de outro modo não seria a pessoa que sou. Pacificada
com esses momentos tão duros, embora o Presente, nos faça, fruto das actuais
dificuldades, reviver muitas das memórias mais doridas.
Em 2010, pude finalmente regressar a Angola, onde pude voltar ao
N’Zeto que me concebeu. Hoje sem guerra, voltei, após 8 horas de viagem por
terra batida, com uma certidão na mão e, no peito, um terço que me ofereceu o
missionário polaco que ali encontrei, o segundo branco que o Nzeto nos nossos
dias tem. Ou outro, mais velho, assistira já à guerra colonial e a todas as que
lhe seguiram, pois por ali dominou a UPA/FNLA, a UNITA até que, finalmente, se
instalou definitivamente o MPLA.
Nos caminhos que ali vão dar, o terreno pode estar ainda minado aqui e
ali, mas já não se houve contar que cabeças de homens foram decepadas, seja por
colonos, ou por tribos ou partidos diferentes.
Recordarei sempre o cheiro forte e quente que inalava da terra, assim
molhada da chuva torrencial. Das gretas que se abriam por debaixo dos pés após
o vendaval, bem como daquelas estranhas "formigas" com asas, que
invadiam depois o céu, até que cansadas se tornavam seres da terra, perdendo as
asas que se acumulavam nas ruas e quintais. Não sei se por forças divinas,
reconheci em 2010 a missão, ou se a vivi como quando fui baptizada, sei apenas
que senti que pertencia também tanto àquele lugar.
Finalmente soube ali desabar a chorar, agarrando a terra, como há
muito não me lembrava!
25 de Abril, SEMPRE!
E partilho um poema que resumiria o que sinto que foi esta caminhada
até hoje.
Vivo numa ilha no meio do Atlântico,
ou que talvez ainda não lhe tenha chegado,
apesar de há tanto tempo nadar.
E já arrumei memórias, tantas e tantas mais
já pari e, por isso, plantei uma árvore feita
de esperança
já chorei insónias longas,
mas também muito sorri
fiz os livros que ditam os mandamentos
tentando dar sentido às palavras que se foram
cozendo entre si
já passeei por jardins de luz, por entre
silêncios e multidões
já vi morrer e matar, guerras da vida que nem
sempre são as naturais
enterrei mortos meus, cerrando as portas à
descrença
e esqueci dores, transformando-as em
lembranças
aprendendo a dizer-lhes até sempre, até já
já viajei, dentro e fora de mim
sonhando prazeres que nem sempre encontrei
e, contudo, cruzei montes, vales e oceanos
daqui e dali
julgando que os ia poder abraçar
já tive amores e desamores
mas crente sou ainda que o último é sempre o
maior
sei que o será
já fui rica e pobre; faço contas de somar e
diminuir
saldando as que havia a pagar
cigarro aceso noite fora, sem saber como o ia
fazer
já avaliei e fui avaliada
testes mais não poderia haver, porque poucos
humanos os conseguiriam passar
já me preparei para morrer,
encomendando aos Céus os testemunhos meus
por isso, por isso e tudo o mais, agora quero
e sem medo o direito a viver!
E viverei sem esperar a licença de ninguém, porque não a pedirei,
pois seguirei caminho, cruzando os mares da minha fé.
Filomena Barata
Nenhum comentário:
Postar um comentário