quinta-feira, abril 24

O Meu testemunho II

F.B.

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      EDIÇÃO 22 - ABRIL 2014                                                                                                                                                          INÍCIO                SOBRE                CONTACTOS                     
Filomena Barata



Lisboa, Abril de 2014 (adaptado e actualizado a partir de «Folhas soltas: O Meu Testemunho», in: http://aeppea.wordpress.com/filomena-barata-folhas-soltas-o-meu-testemunho/  e http://www.bubok.pt/livros/4585/Folhas-Soltas--O-meu-testemunho)

Tentei pensar muito fundamentalmente no que representava o 25 de Abril para mim, e julgo que para tantos que o viveram como eu em Angola, país onde nasci. 
Não é fácil, creiam, pois se pudesse assim resumiria que ainda hoje me debato entre a perda da infância e adolescência e a crença, ou seja, os valores em que acredito. Refiro-me à crença profunda na Democracia e numa sociedade mais justa, algo que ainda está por atingir, em Angola e em Portugal.


Gostaria de poder partilhar convosco de experiências anti-regime, mas era tão jovem, pese a consciência já não estar adormecida.
Em surdina ouvira falar da adesão do meu pai ao Humberto Delgado, que distribuíra panfletos, um ano após o meu nascimento, pois a sua candidatura havia mobilizado a oposição em Angola. Apenas sei que, segundo um belíssimo blogue que encontrei sobre o tema, na Província do Congo, em Angola, votaram 100 brancos pela causa, num conjunto em que 2.189 pessoas votaram Américo Tomás.

De referir que, tal como em Portugal, o universo dos recenseáveis era pequeno, pois exigia-se a condição de saber ler e escrever, excluindo assim, quase toda a população negra, motivo pelo que, diga-se que razoavelmente, para essa população, as eleições, eles eram considerados pelos nacionalistas negros de «brancos para brancos». Em Angola, já em 1960, foram referenciados apenas 37.873 pessoas, do Grupo de negros e mestiços, recenseados.
No momento das eleições de Humberto Delgado, na totalidade, o Universo de recenseados foi apenas de 56.298 pessoas, sendo o número de votantes de 32.654 pessoas. O resultado foi de 22.294 votantes em Américo Tomás e 10.360 em Humberto Delgado.

Contudo, à época, em Angola, só Portugueses deveria haver aproximadamente 200.000 residentes e claro está, que nem todos tinham idade de votar.

Mas goradas as expectativas que alguns acalentavam, desejando mudanças, pois acreditava-se que com a sua vitória traria maior autonomia e desenvolvimento para as “colónias”, embora o seu programa pouco mais protagonizasse nessa matéria do que «actualizar praticamente a integridade tradicional ultramarina, cujos fundamentos são: a unidade espiritual, política e económica da população portuguesa de aquém e além-mar, e a igualdade de direitos de todos os seus constituintes», pouco acrescentando no que se refere ao relacionamento com o mundo colonial, para além do que respeita à sentida falta de política para os vários territórios portugueses, à ausência de um plano de fomento e autonomia, baseado nas potencialidades energéticas, técnicas, demográficas e económicas sem o que, era impossível estruturar solidamente a unidade nacional dos territórios portugueses”, usando as palavras do autor do blogue. Humberto Delgado - As eleições de 1958 em Angola e no Quitexe.

Certamente pelo que aconteceu em Portugal, com a vitória esmagadora de Américo Tomás e o malogrado destino de Humberto Delgado, silenciados ficaram os anseios de alguns dos que acreditaram que algo poderia melhorar sem recurso à guerra. Mas o Governo Central, sediado em Lisboa, manteve-se alheio aos sinais do mundo, designadamente em Goa, e nem a pressão das elites dominantes em Angola, no sentido de tentar uma maior autonomização das colónias não conduziu a qualquer resultado.
E assim, logo em 1961, começa a luta armada pela Independência, a partir do ataque frustrado do Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA), de orientação marxista, a três prisões de Luanda, na tentativa de libertar líderes nacionalistas. Entretanto, em 1962, diferenças culturais e políticas dividem o movimento pela Independência, dando origem a que Rebeldes do Norte formem a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), anticomunista. Foi exactamente na zona onde fora concebida, hoje N’Zeto, outrora Ambrizete, a guerra contra a potência colonial rebentou nesse mesmo ano, deixando desprevenidas as populações brancas que lá viviam, a tal ponto, que recordo as noites de recolher obrigatório, em que homens guardavam em armazéns mulheres e crianças, as armas que conheciam eram das usadas na caça.
Foi depois dessa altura que os meus pais se deslocaram para Malanje, onde vivi toda a minha adolescência, cidade planáltica e onde da guerra pouco se ouvia falar, à excepção das que os soldados regressados do mato acabavam por contar.

Poderia tentar contar-vos que a minha adolescência tinha sido passada entre jogos de aprendiz de menina e de mulher, pois Angola deixei  já com 17 anos feitos e que oiço ainda, por vezes, os sons da infância! Barimbaus, batuques, marimbas e noites de rebita, semeando-se no ar. Ou o barulho das imensas quedas de água do Duque de Bragança, hoje Kalandula, das Quedas do Kuanza ou dos Fortins da Rainha Ginga. Mas não, não é este o lugar e nunca correria o risco de dizer que por lá, por aquelas partes do Império, o mundo estava bem. E não, nem tudo estava bem, todos o sabemos!

Em Angola, sabíamos também, embora o palco de guerra fosse no mato e tantos o quisessem ignorar, que desde 1961, a morte podia ali, nas mãos de angolanos revoltados com a situação colonial, nos movimentos já organizados e em luta contra os Portugueses.

E foi em Malanje, nessa cidade aberta e vivida mais na rua do que em casa, que já adolescente, tive a sorte de conhecer um jovem militar que jamais esquecerei, mas que a vida infelizmente ainda não me permitiu reencontrar, o António Martinho, que me ajudou a canalizar a revolta que sentia adolescente, quando via camiões cheios de homens contratados e que, como gado, atravessavam empilhados a cidade. Eram conduzidos para as Grandes Fazendas da Baixa do Kazange, onde o algodão em grandes extensões fazia lembrar a neve a muitos, uma realidade muito dura para quem era quase pertença dos fazendeiros.

Ele ensinou-me que em Portugal havia, na clandestinidade, pessoas que se opunham ao regime e chamou-me a atenção, de uma forma mais sistematizada do que a forma intuitiva como já me revoltava, para os soldados, tão jovens como ele, que iam para África combater. Aprendi ainda o que era a revista «Seara Nova», o movimento de «Largo do Rato» e despertou-me para as lutas travadas nas Universidades em que participara, nomeadamente no Instituto Superior Técnico. Aprendi assim também o que queria dizer falar de convicções!

E ainda hoje recordo as vezes que com ele ouvi «O Soldadinho não volta do outro lado do mar».

Falou-me da sua experiência no "mato", em Zala, no Norte de Angola, e que havia muita gente a morrer para que a paz morna dos meios urbanos se mantivesse e para que pudesse florescer a riquíssima arquitectura moderna que enxameou as "restingas litorais" de Angola ou dos fabulosos edifícios e espaços públicos de lazer com que me habituei a conviver desde menina, como cinemas, piscinas e tantos outros lugares.

O que me foi contado era de arrepiar de tal forma, que nos fazia pensar se seria efectivamente assim ou não, pois homens fechados em acampamentos militares eram entregues ao que o medo e a guerra conseguem fazer.

Mas de tal forma devia ser a violência do vivido, que cheguei a conhecer soldados, que de tal modo, alucinados pela prolongada estada no "mato", passeavam camaleões a quem davam estatuto de confidentes e companheiros de infortúnio. Um deles que tão bem conheci acabou por suicidar-se um dia, porque não aguentou as memórias da guerra e a ausência de cartas da namorada que havia deixado na "Metrópole" e que o acabara por esquecer.

Com essa idade aprendi tanto, que me julguei quase mulher. Aprendi o que era a guerra, mas soube também o que queria dizer o amor; o que era perder pessoas e ganhar outras mais.

Um dia, célebre dia de 24 de Abril de 1974, uma amiga, um pouco mais velha e também atenta às notícias de Portugal, desceu a minha a rua apitando e gritando: houve um golpe de Estado! Lembro-me de ter saltado de alegria, ainda sem saber o que tinha acontecido.

Mas acreditei, não me perguntem porquê, que algo de bom ia passar-se. Sei que festejámos, mesmo assim sem saber bem porquê.

Mas, um outro dia, nem um ano depois da festa que todos julgámos poder também pertencer-nos, a guerra bateu-nos mesmo à porta, pois nem os Acordos de Alvor que o governo português promovera, em Janeiro de 1975, abrindo negociações com os três principais movimentos de libertação (MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola, FNLA – Frente Nacional de Libertação de Angola e UNITA – União Nacional para a Independência Total de Angola), que visava criar um governo de transição e o processo de implantação de um regime democrático em Angola (Acordos de Alvor, 31 de Janeiro de 1975) lhe puderam valer. Em Fevereiro de 1975 iniciaram-se os ataques, a guerra, em Luanda, onde na altura me encontrava a estudar com a minha irmã. E em Fevereiro o MPLA iniciou a luta contra os outros movimentos e, em meados de Julho, já tinha conseguido expulsar a UNITA e a FNLA de Luanda.

Revoltavam-se assim agora irmãos, uns contra os outros. Todos desavindos. E aquilo que se rebelara contra a guerra colonial, tornava-se agora, infelizmente, numa espécie de vingança étnica, claro que com conotações políticas, tendo as várias facções o apoio de potências internacionais: a União Soviética e principalmente Cuba apoiavam o MPLA, que controlava a cidade de Luanda e algumas outras regiões da costa, nomeadamente o Lobito e Benguela. E, em 5 de Outubro de 1975, os cubanos acabaram por desembarcar em Angola.

A África do Sul, por seu lado, apoiava a UNITA, União Nacional para Independência Total de Angola, criada em 1966, formada por rebeldes nacionalistas do Sul. A princípio maoísta (o líder, Jonas Savimbi, fora treinado na China), a UNITA torna-se anticomunista e recebe apoio do regime sul-africano do apartheid, que desde Agosto de 1975, passou a ter forças em Angola. O Zaire, que apoiava a FNLA, invadiu também este país, em Julho de 1975. Os EUA, que inicialmente apoiaram apenas a FNLA, não tardaram a apoiar também a UNITA.

Contudo, pese estes apoios, no dia de 11 de Novembro de 1975, Angola a declaração unilateral da Independência e uma Nação de um partido único: o MPLA.

Soube um dia, por meados de 1975, que Malanje, onde continuaram a viver os meus pais, também estava sob fogo. Ouvia rumores e rumores.

Desta feita, digladiavam-se ali, a UNITA e o MPLA.
A cidade onde vivera parte da infância e da adolescência, Malanje, foi totalmente evacuada e com os restantes habitantes, a minha família, depois de dias passados no Quartel, foi deslocalizada por coluna militar para Nova Lisboa/Huambo. Foi um dos períodos mais difíceis da minha vida, pois as comunicações foram totalmente cortadas e só um mês e meio depois, através de um Radioamador, consegui saber deles.
Foi tal a mágoa e apreensão desse silêncio sepulcral, que ainda hoje me dói quem silencia, sem saber o efeito que isso tem.

Mas vivos os soubemos no Huambo, até que a belicosidade não permitiu novamente que se restabelecessem totalmente e, contrariados, pois acreditavam que era possível ficar em Angola, acabaram por ser evacuados para Portugal, tendo aterrado em Lisboa, por tramas que só aos deuses cabe fazer, no mesmo dia que eu, que partira de Luanda, pois na sua mensagem me haviam recomendado que abalasse também, deixando em Angola todos os seus bens, LITERALMENTE TODOS, e muitas saudades, claro está.
Não vos falarei da enorme diferença de condições entre os que o fizeram num primeiro momento e os últimos, pois como eu e meus pais, muitos ficaram até quase final de 1975. Nem do desembarque de Cubanos ou de Sul-africanos que vieram dar apoio a forças belicosas em confronto, dividindo mui8tos de nós que em Angola queriam ficar. Ou do som dos morteiros ou das Kalashnikov.
Ou dos insultos e ameaças que espíritos mais vingativos, acalorados num racismo que a revolta alimentara, nos faziam diariamente na rua.

Foi a tudo isso, acrescido a um célebre julgamento popular, efectuado em Luanda em Agosto de 1975, supostamente para servir de exemplo a violadores ou chacinadores que me fez não aguentar mais e seguir as recomendações dadas pelo meu pai. Caía por terra tanta da esperança que ainda tinha no MPLA.

Deste êxodo ou diáspora, segundo dados obtidos através do Jornal Público desta semana, intitulado «Os últimos Filhos do Império» assinado por São José Almeida, terão sido cerca de meio milhão de Portugueses que foram integradas na sociedade entre o Verão de 1974 e o Verão de 1975, a última geração de nacionais que viveram na África Colonial Portuguesa.
Nem tão pouco das mágoas, dificuldades ou mesmo injustiças, mas poderei, como a autora deste artigo, concluir que genericamente foi uma integração sucedida, pois de outro modo não seria a pessoa que sou. Pacificada com esses momentos tão duros, embora o Presente, nos faça, fruto das actuais dificuldades, reviver muitas das memórias mais doridas.
Em 2010, pude finalmente regressar a Angola, onde pude voltar ao N’Zeto que me concebeu. Hoje sem guerra, voltei, após 8 horas de viagem por terra batida, com uma certidão na mão e, no peito, um terço que me ofereceu o missionário polaco que ali encontrei, o segundo branco que o Nzeto nos nossos dias tem. Ou outro, mais velho, assistira já à guerra colonial e a todas as que lhe seguiram, pois por ali dominou a UPA/FNLA, a UNITA até que, finalmente, se instalou definitivamente o MPLA.

Nos caminhos que ali vão dar, o terreno pode estar ainda minado aqui e ali, mas já não se houve contar que cabeças de homens foram decepadas, seja por colonos, ou por tribos ou partidos diferentes.

Recordarei sempre o cheiro forte e quente que inalava da terra, assim molhada da chuva torrencial. Das gretas que se abriam por debaixo dos pés após o vendaval, bem como daquelas estranhas "formigas" com asas, que invadiam depois o céu, até que cansadas se tornavam seres da terra, perdendo as asas que se acumulavam nas ruas e quintais. Não sei se por forças divinas, reconheci em 2010 a missão, ou se a vivi como quando fui baptizada, sei apenas que senti que pertencia também tanto àquele lugar.
Finalmente soube ali desabar a chorar, agarrando a terra, como há muito não me lembrava!

25 de Abril, SEMPRE!

E partilho um poema que resumiria o que sinto que foi esta caminhada até hoje.

Vivo numa ilha no meio do Atlântico,
ou que talvez ainda não lhe tenha chegado, apesar de há tanto tempo nadar.
E já arrumei memórias, tantas e tantas mais
já pari e, por isso, plantei uma árvore feita de esperança
já chorei insónias longas,
mas também muito sorri
fiz os livros que ditam os mandamentos
tentando dar sentido às palavras que se foram cozendo entre si
já passeei por jardins de luz, por entre silêncios e multidões
já vi morrer e matar, guerras da vida que nem sempre são as naturais
enterrei mortos meus, cerrando as portas à descrença
e esqueci dores, transformando-as em lembranças
aprendendo a dizer-lhes até sempre, até já
já viajei, dentro e fora de mim
sonhando prazeres que nem sempre encontrei
e, contudo, cruzei montes, vales e oceanos daqui e dali
julgando que os ia poder abraçar
já tive amores e desamores
mas crente sou ainda que o último é sempre o maior
sei que o será
já fui rica e pobre; faço contas de somar e diminuir
saldando as que havia a pagar
cigarro aceso noite fora, sem saber como o ia fazer
já avaliei e fui avaliada
testes mais não poderia haver, porque poucos humanos os conseguiriam passar
já me preparei para morrer,
encomendando aos Céus os testemunhos meus
por isso, por isso e tudo o mais, agora quero e sem medo o direito a viver!

E viverei sem esperar a licença de ninguém, porque não a pedirei,
pois seguirei caminho, cruzando os mares da minha fé.



Filomena Barata

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