Filomena Barata
MARÇO, O MÊS DA MULHER E DO EQUINÓCIO DA PRIMAVERA
"Esta cabeça evanescente e aguda,
tão doce no seu ar decapitado,
do Império portentoso nada tem:
nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
na sua boca as legiões não marcham,
na curva do nariz não há povos
que foram massacrados e traídos.
É uma doçura que contempla a vida,
sabendo como, se possível, deve
ao pensamento dar certa loucura,
perdendo um pouco, e por instantes só,
a firme frieza da razão tranquila.
É uma virtude sonhadora: o escravo
que a possuía às horas da tristeza
de haver um corpo, a penetrou jamais
além de onde atingia; e quanto ao esposo,
se acaso a fecundou, não pensou nunca
em desviar sobre el' tão longo olhar.
Viveu, morreu, entre colunas, homens,
prados e rios, sombras e colheitas,
e teatros e vindimas, como deusa.
Apenas o não era: o vasto império
que os deuses todos tornou seus, não tinha
um rosto para os deuses. E os humanos,
para que os deuses fossem, emprestavam
o próprio rosto que perdiam. Esta
cabeça evanescente resistiu:
nem deusa, nem mulher, apenas ciência
de que nada nos livra de nós mesmos."
tão doce no seu ar decapitado,
do Império portentoso nada tem:
nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
na sua boca as legiões não marcham,
na curva do nariz não há povos
que foram massacrados e traídos.
É uma doçura que contempla a vida,
sabendo como, se possível, deve
ao pensamento dar certa loucura,
perdendo um pouco, e por instantes só,
a firme frieza da razão tranquila.
É uma virtude sonhadora: o escravo
que a possuía às horas da tristeza
de haver um corpo, a penetrou jamais
além de onde atingia; e quanto ao esposo,
se acaso a fecundou, não pensou nunca
em desviar sobre el' tão longo olhar.
Viveu, morreu, entre colunas, homens,
prados e rios, sombras e colheitas,
e teatros e vindimas, como deusa.
Apenas o não era: o vasto império
que os deuses todos tornou seus, não tinha
um rosto para os deuses. E os humanos,
para que os deuses fossem, emprestavam
o próprio rosto que perdiam. Esta
cabeça evanescente resistiu:
nem deusa, nem mulher, apenas ciência
de que nada nos livra de nós mesmos."
Jorge de Sena
Março é o mês que, a oito, ficou fortemente ligado à mulher, homenageando aquelas operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, que fizeram uma grande greve, ocupando a fábrica e reivindicando melhores condições de trabalho, tais como a redução do número de horas de trabalho para dez (as fábricas exigiam cerca 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens e tratamento digno.
Essa manifestação foi reprimida com brutal violência, tendo sido as mulheres trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada.
Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas.
Assim, o Dia da Mulher, dia em que termino esta crónica, não é para mim um dia qualquer. É uma data através da qual se faz, rememorando esse triste evento, apelo à solução de tanta coisa que ainda está por solver, pois, no Mundo, ainda há tantas mulheres que não sabem o que é o direito ao Trabalho, o direito à sua independência financeira, o direito à autonomia emocional, para não falar já do direito ao seu corpo e à sua sexualidade.
E por isso, o dia tem como objectivo principal, discutir o papel da mulher na sociedade actual.
Aproveitando, portanto, o facto de estarmos na primeira quinzena do mês, que para o calendário romano foi durante séculos o primeiro do ano, o Mês de Marte, o Deus da Guerra que, curiosamente nutriu uma grande paixão por Vénus, a deusa da Beleza e do Amor, esposa de Vulcano.
Assim, apesar de ser um mês dedicado ao masculino, será às Mulheres e às Divindades Femininas que dedicarei esta crónica.
E se, o poeta Ovídio (43 a.C. – 17/18 d.C.), na «Arte de Amar» lhe dedica um notável texto, espelhando o conceito que a maioria dos cidadãos tinha sobre a mulher, nem todas as mulheres experimentam os mesmos sentimentos. Encontrareis mil almas com mil maneiras diferentes. Para as conquistar, empregai mil maneiras. A mesma terra não produz todas as coisas: tal convém à vinha, tal à oliveira; aqui despontarão cereais em abundância. Há nos corações tantos caracteres diferentes, quantos rostos há no mundo. O homem prudente acomodar-se-á a estes inumeráveis caracteres; novo Proteu, tão depressa se diluirá em ondas fluidas, para logo ser um leão, uma árvore, um javali de eriçadas cerdas. Os peixes apanham-se aqui com o arpão, ali com o anzol, acolá com as redes puxadas pela corda estendida. O mesmo método não convirá a todas as idades: uma corça velha descobrirá a armadilha de mais longe; se te mostrares experiente junto de uma noviça, demasiado petulante junto de uma recatada, ela desconfiará que a vais tornar infeliz. Assim é a mulher, que às vezes teme entregar-se a um homem honesto, mas caiu vergonhosamente nos braços de alguém que a não merece.
É um facto que a Mulher em Roma, sociedade ancestralmente patriarcal, dependia de um pater famílias, que exercia o seu poder até à morte, podendo decidir da vida ou morte dos seus filhos.
Pelo casamento, a mulher passava a depender da família do marido, ficando submetida a um poder familiar, semelhante ao que tinha em casa antes do matrimónio, pois o esposo podia também decidir da sua vida. Quando casada, era, de facto “dona da casa”, não sendo reclusa nos aposentos das mulheres, Geniceu, como acontecia na Grécia Antiga. Tomava conta dos escravos, participando das refeições com o marido, como se pode verificar no banquete relatado na obra Satyricon de Petrónio (27-66 d.C), saía à rua (usando a stola matronalis) e participava nos espectáculos públicos, sendo por isso criticada por Juvenal e pelo cristão e moralista Tertuliano, e tinha acesso aos tribunais.
Por casamento — justum matrimonium —, sancionado pela lei e pela religião, processava-se a transferência da mulher do controle (potestas) do pai, para o de seu marido (manus).
No entanto, em Roma as mulheres ocupavam uma posição de maior destaque do que aquele que acontecia na Grécia Antiga. Com o crescimento de Roma, a mulher foi gradualmente adquirindo autonomia, podendo inclusivamente participar da herança dos bens paternos, sendo sabido que, a partir do século II a.C., é notório um processo de emancipação.
Foram-se abandonando gradualmente as formas mais antigas de casamento e adoptou-se uma na qual a mulher permanecia sob a tutela de seu pai, e retinha na prática o direito à gestão de seus bens, havendo muitas mulheres ricas, disfrutando do seu património e dedicando-se aos negócios.
O divórcio era aceite na sociedade romana e o casamento chegou a ser até impopular na Época Imperial, sendo estas as palavras de Cecílio Metelo “Se pudéssemos passar sem uma esposa, romanos, todos evitaríamos os inconvenientes, mas como a natureza dispôs que não podemos viver confortavelmente sem ela, devemos ter em vista nosso bem-estar permanente e não o prazer de um momento” (Suetônio, Vida dos Doze Césares, “Augusto”, 89).
Mas, se analisarmos o papel das divindades greco-romanas, o universo feminino sempre foi agente de toda a trama mitológica e as mulheres foram activas em toda a lendária com que a Civilização Mediterrânica narrou e moldou a História.
Com o Equinócio da Primavera rememoravam o regresso de Proserpina à terra, para junto de sua mãe Deméter, a deusa mãe da Agricultura, Ceres para os Romanos, honrando-a esse regresso do Mundo Subterrâneo onde vivia um metade do ano – representa-se assim o Inverno - com Hades, seu esposo, com festivais, como aqui já falámos em crónica anterior.
Mas muitas outras divindades rememoram em Roma a relação íntima com que os povos da Antiguidade se relacionavam com os ciclos da Natureza.
Ísis, a deusa egípcia da fertilidade, adoptada por Gregos e Romanos, sintetiza essa relação, consumando ainda a relação do Mundo Mediterrânico.
Esta divindade a que eram dedicados cultos iniciáticos, tinha ainda fortes conotações com a saúde, aparecendo associada a algumas termas medicinais romanas, sendo mesmo denominada com alguns epítetos correlacionados com essa qualidade, como se pode verificar numa inscrição de Óstia que a designa Salutaris. Por isso também acontece ser invocada conjuntamente com Serápis e Esculápio, o deus da Saúde.
Mas muitas outras divindades femininas do panteão greco-romano nos fazem essa relação com a Natureza, salientando Fauna, esposa de Fauno, deus dos bosques e planícies que protegia os rebanhos e culturas, cujos oráculos se conhecem através dos murmúrios das árvores.
Fauna é a protectora das mulheres contra a esterilidade, sendo considerada pelos Romanos como a mãe do deus Latino, um dos reis lendários do Lácio, divinizado como Jupiter Latiaris. Nos lugares onde se faziam os oráculos de Fauno, os ritos observados foram minuciosamente descritos pelo escritor Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.): um sacerdote oferecia uma ovelha e outros sacrifícios e a pessoa que consultava o oráculo, tinha que dormir uma noite sobre a pele da vítima, dando então o deus uma resposta através de um sonho ou mediante vozes sobrenaturais. O escritor Ovídio descreve ritos parecidos celebrados sobre o Aventino.
O escritor cristão Justino Mártir identificou Fauno com Luperco (‘o que protege do lobo’), o protector do gado, seguindo o autor romano Tito Lívio (59 a.C. – 17 a.C), originalmente adorado na Lupercalia, celebrada no aniversário da fundação de seu templo (15 de Fevereiro), quando seus sacerdotes (Luperci) levavam peles de cabra e golpeavam os espectadores com cintos de pele desse animal.
Março é, pois, o mês em que se consagra o Equinócio da Primavera, essa que todos gostaríamos de ver florir dentro de nós, sendo Marte não o garante da vitória na guerra, mas da Paz.
Filomena Barata, Licenciatura em História, pela Faculdade de Letras de Lisboa. Mestrado em Arqueologia pela Universidade de Letras do Porto. Técnica Superior da DGPC, Secretaria de estado da Cultura. Corpos Gerentes da Liga de Amigos da Miróbriga e da VITRIOL, Associação para a Lusofonia.
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