sexta-feira, agosto 24

PORTUGAL NO FEMININO: AS CARTAS PORTUGUESAS (reed.)



Leonel Borrela A janela de Mértola, gradeada, grande, nada discreta... e antes, e agora, sempre intrometida no evoluir da História dos Homens e das Mulheres, principalmente destas. Uma janela apeada do dormitório novo, seiscentista, do convento da Conceição de Beja, aquando das demolições parcelares nele realizadas no final do século XIX. Um documento autêntico das Lettres Portugaises, atribuídas a Mariana Alcoforado, mencionado com indescritível emoção na quarta carta de amor da freira ao seu amado francês "Chamilly". Uma janela que é no fundo o símbolo maior de um amor proíbido, de uma paixão exarcebada e da ânsia de liberdade sem limites. Uma história que serviu artistas, escritores, políticos, dramaturgos, músicos, que preparou o romantismo, que serviu e serve a economia europeia e não só, uma história ainda polémica, com dois "protagonistas" -um francês e outro português. Isto tudo para dizer que as cartas são de facto maravilhosas... leiam-nas se querem conhecer o que pode ser uma paixão amorosa e desencantada, com, assim a julgo, um final feliz.




Hoje vou aqui deixar pedaços soltos das belas «Cartas Portuguesas» de Soror Mariana Alcoforado (1640-1723) que, mesmo sofrendo, tanto acabou por viver.
Viu as suas cinco Cartas publicadas em França, em 1669.

Não sei se sofreu por amor, ou se, simplesmente, amou o sofrer.
Mas talvez esta última opção lhe tenha dado força para se escrever.

Sei, sim, que tão bem descreveu o seu esperar, atitude que não pôde combater, porque, em Beja, no convento que lhe roubou o nome, a janela de Mértola era a única esperança para o olhar, fechada em quatro paredes, "sem outro horizonte que não fosse o seu amor (...) e o céu do Alentejo", parafraseando Eugénio de Almeida.
Nem a condescendência de D. Brites a conseguiu, desse modo, demover de sofrer, de esperar.

São fantásticas as Cartas Portuguesas, mas, felizmente, hoje, até dos conventos se pode sair.
E pode-se, de facto, ir, ver o mar, e não somente sonhá-lo nas searas que, da Torre castelo de Beja, do Lidador, se vêem, e cujo ondurar comparam à rebentação.
E sabermos também, agora, que O AMOR NÃO É INCONDICIONAL. Não é uma prisão ou retiro conventual. Mas apenas uma construção.

Só que nem esse ondular imaginado por Soror Mariana, nem esse olhar ela pôde ter...

Por serem belas as Cartas, neste Dia de Camões, vão pequenos fragmentos deste Portugal no feminino (se bem que, com tanto amor narcisico, chego mesmo a desconfiar, como alguns historiadores da Literatura Moderna, que também é bem possível que um homem as tenha escrito, para tanto e tão sofredoramente se fazer desejar, como tão comum é no mundo dos afectos masculinos!).

«Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa.
(...)
Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que és a única causa, já vou tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta.
(...) Como é possível que a lembramça de momentos tão belos se tenha tornado tão cruel' E que, contra a sua natureza, sirva agora só para me torturar o coração? Ai!, a tua última carta reduziu-o a um estado bem singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar. (...): recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que para ti a não posso guardar.
(...)
Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem me voltes a pedir que me lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança que me deste de vires passar algum tempo comigo (...)».
Carta Primeira

«Quanta inquietação me terias poupado se, quando nos conhecemos, o teu procedimento fosse tão descuidado como o é agora! mas quem, como eu, não se deixaria enganar por tantos cuidados, e a quem não pareceriam verdadeiros? Que difícil resolvermo-nos a duvidar da lealdade de quem amamos! Sei muito bem que te serves de qualquer desculpa, mas, mesmo sem pensares em dar-ma, o meu amor é tão fiel que só consente em culpar-te para ser maior o prazer em te justificar.
(...) Tu não estavas cego como eu, porque me deixaste então chegar ao estado a que cheguei? Que querias dum desvario que não podia senão importunar-te? Se sabias que não podias ficar em Portugal, porque me escolheste a mim para tornares tão desgraçada? Terias, certamente, encontrado neste país uma mulher mais bonita com quem tivesses os mesmos prazeres, pois só os de natureza grosseira procuravas; que te amasse fielemente enquanto aqui estivesses; que se resignasse, com o tempo, à tua ausência, e a quem poderias abandonar sem perfídia e crueldade. O teu procedimento é mais de um tirano empenhado em perseguir, que de um amante preocupado apenas em agradar. Ai!, porque tratas tão mal um coração que é o teu?»
Carta Quarta.

Gratamente, hoje o antigo Convento de Soror Mariana tem as portas abertas.
Da janela já não se consegue imaginar o que seriam as searas do Alentejo, espraindo-se para os lados de Mértola, como naquele tempo em que a freira Mariana o habitou.
Mas também por isso mesmo, tarde, mas a boa hora, o outro lado da rua habitada se pode ver!

E, vivamos o bafo benfazejo dos dias, porque hoje entramos e saimos daquele belo Museu Rainha D. Leonor.
E podemos, reitero, ir ver outro mar! Com o Alento que a brisa fresca sabe dar.
E não nos entregar ao sofrimento de amar, senão por poesia!

Um comentário:

cris disse...

Belo texto, sim senhora!
já ía até Beja, espreitar pela tal janela, certa de que a liberdade sem janelas é melhor do que com elas :)
bom dia de Portugal, de Camões e das comunidades,
abraço

cd